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Crescem reações à relação entre ciência e indústria de ultraprocessados

Foto: arquivo Abrasco

Eventos sem patrocínio de corporações, manifestos e um código de ética claro sobre as relações entre nutricionistas e marcas dão sinais de novos ventos na área

A presença da indústria de ultraprocessados na realização de pesquisas e eventos na área de alimentação e nutrição tem sido alvo de crescentes críticas. A explosão da epidemia de obesidade e doenças crônicas, associada a evidências de manipulação de trabalhos científicos e de interferência em políticas públicas, vem fazendo com que surjam mais contestações à relação entre pesquisadores e o setor privado. Isso não é mensurável por índices quantitativos, mas a corrente da ciência que defende repensar essa situação tem ganho corpo nos últimos anos.

Recentemente falamos sobre o caso de Susan Prescott, professora de pediatria na Escola de Medicina da Universidade da Austrália Ocidental que decidiu abandonar a consultoria que dava a Nestlé e afirmou que os cientistas próximos à indústria têm ficado cada vez mais “entrincheirados” porque sabem que estão do lado errado da história. “Isso diz respeito a muito mais do que apenas alimentos ultraprocessados ou uma grande empresa. É sobre um sistema falido que está destruindo nossa saúde, nossas comunidades e nosso ambiente.”

O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN) debateu a formulação de um novo código de ética. O documento tem um capítulo inteiro dedicado às relações dos profissionais com o setor privado, justamente o tópico que despertou mais polêmica na consulta pública encerrada no ano passado. “Uma das críticas é de que a indústria de alimentos é um campo de trabalho importante da nutricionista. Você pode trabalhar lá, só que existem alguns limites do que você pode expressar nessa relação”, diz Thais Salema, integrante da Comissão Especial do Código de Ética.

O documento foi aprovado em breve e será lançado durante o Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran), em abril. A ideia é impor limites a artigos e eventos patrocinados. O código proibirá que o nutricionista trabalhe em espaços de promoção de produtos, realize venda casada, utilize material promocional durante a consulta e associe a imagem a uma empresa — prática adotada por profissionais em tempos de redes sociais.

“Queremos um código que dê autonomia ao profissional, mas que, ao mesmo tempo, proteja a sociedade dos excessos que possam ocorrer. O documento deve ser uma ferramenta de proteção ao nutricionista e à sociedade”, resume a conselheira Maria Adelaide Wanderley Rego, que participou da elaboração do texto.

Os problemas causados pelo uso de redes sociais são uma clara preocupação do documento. Muitas e muitos nutricionistas têm Facebook e Instagram como espaço de divulgação do trabalho. Fotos de “antes e depois” e associação a marcas com efeitos milagrosos foram uma consequência quase “natural” dessa situação.

O Brasil tem cerca de 130 mil nutricionistas, segundo os números mais recentes do CFN. O documento foi elaborado a partir das contribuições enviadas pela categoria, tentando pensar naquilo que poderia significar a violação de um valor ou um princípio fundamental em relação à vida humana.

“A riqueza desse processo foi a reflexão do nutricionista, do papel na sociedade, parar para pensar nas suas práticas. Esse processo de desnaturalização já começou a acontecer”, diz Thais Salema. “Mas isso depende do perfil da pessoa. Se a pessoa tem um perfil mais aberto ao aprendizado e à mudança, ou se é uma pessoa que se sente afetada e ofendida por sempre ter tido um tipo de prática e agora vê esse tipo de prática sendo questionado.”

A principal oposição ao novo código partiu do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região, que abrange São Paulo e Mato Grosso do Sul. O mesmo grupo havia se oposto ao Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014, que despertou críticas por parte da indústria, insatisfeita com a recomendação de que se evite o consumo de ultraprocessados.

A atual presidente do CRN3, Silvia Cozzolino, manifestou-se contra o rumo do debate sobre conflito de interesses durante um evento promovido pelo CFN. Na entrevista que nos concedeu, ela disse que gostaria de ver alterações nos artigos do novo código a respeito do relacionamento com o setor privado e na interação com redes sociais. “Todos esses dois, três anos que se discutiu o Código de Ética do Nutricionista, percebemos que há uma corrente conservadora, que acha que isso não deve ser feito, e uma corrente mais aberta, que acha que pode ser feito, desde que com determinados parâmetros. Então, eu não vejo como deixar a internet de lado”, argumenta. “Do meu ponto de vista não deveria haver barreiras. A única barreira deveria ser a ética do nutricionista, a responsabilidade que ele tem para fazer ações que promovam a saúde.”

Fôlego novo

Em agosto de 2015, a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban), que já foi presidida por Cozzolino, teve a realização de seu congresso anual contestada: “A Executiva Nacional dxs Estudantes de Nutrição vem a público repudiar a Política de Patrocínio da Comissão Organizadora do 13º Congresso da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição, que aceita como financiadores do seu evento de maior notoriedade grandes corporações da Indústria de Alimentos, como: Danone®, Nestlé®, Unilever®, Piracanjuba®, Herbalife® e a Coca-Cola®. Está claro que essas empresas buscam na aproximação e articulação com a comunidade acadêmica/científica promoverem suas marcas, e por consequência, seus produtos, que reconhecidamente comprometem a Soberania Alimentar e a Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos.”

Em Brasília, pouco tempo antes, a Reitoria da UnB havia fechado parceria com o Instituto de Bebidas para a Saúde e o Bem-Estar, da Coca-Cola, para a realização do 1º Seminário sobre Atividade Física e Esporte na Saúde, que foi evento de abertura da Semana Universitária daquele ano. O Centro Acadêmico da Nutrição emitiu nota de repúdio: “O investimento empresarial no espaço acadêmico busca legitimar seu discurso, fortalecer sua imagem frente aos formadores de opinião no espaço da saúde, minimizando a própria contribuição no cenário da obesidade mundial e culpabilizando o indivíduo.”

Esse debate é recente, mas vem tomando fôlego desde o começo da década. Em 2012 o Brasil sediou o World Nutrition Rio, um grande evento da Associação Mundial em Nutrição e Saúde Pública. Já havia consenso prévio entre os organizadores de que se deveria realizar o encontro sem contar com financiamento do setor privado de alimentos, e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), responsável por viabilizá-lo, tinha experiência no assunto.

Os organizadores sabiam que seria preciso segurar a mão nos gastos. Em vez de escolher um espaço luxuoso, decidiu-se pela sede da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que não está, digamos, um primor em termos de conservação. “Muita gente achava que não dava para ter congresso aqui. Se o prédio serve para ter aula, por que não serve para ter congresso? Se é um congresso no terceiro mundo, vamos mostrar o que é o terceiro mundo. Não dá para fingir que vive em outra realidade”, diz Inês Rugani, professora do Instituto de Nutrição da Uerj e uma das coordenadoras do encontro.

Alguns professores aceitaram custear em parte ou integralmente as passagens. E o patrocínio do Ministério da Saúde foi fundamental. “Foi ficando claro o desconforto que as pessoas tinham com a presença da indústria. É uma presença acachapante. Mas todo mundo trabalhava com essa ideia da inevitabilidade”, diz Inês.

Vários dos pesquisadores com quem conversamos elencaram justamente essa questão: congressos desse tipo custam muito caro e é difícil viabilizá-los sem recursos privados. “Você já organizou algum evento? Eu, já”, afirmou Silvia Cozzolino. “Para fazer um evento, convidando pessoas de gabarito internacional, pagando passagem, hospedagem e tudo o mais, você não consegue fazer se não tiver o apoio das empresas. Eu acho um absurdo essa história de proibirem empresas de patrocinar. Infelizmente a gente vive num país em que a maioria dos nossos políticos são questionáveis, mas em ciência… pode até haver, mas em geral as pessoas são éticas e responsáveis.”

Quando o World Nutrition foi organizado, havia vários sinais de influência pesada da indústria de alimentos para direcionar pesquisas. Havia debates no exterior sobre como limitar essa influência. E eram crescentes as evidências de que as corporações têm uma responsabilidade grande pela epidemia de obesidade e por uma série de doenças associadas, com contestações sobre o papel que poderiam desempenhar sentadas à mesa para debater a formulação de políticas públicas.

Em 2013, um grupo de pesquisadores brasileiros deu sequência à discussão com a criação da Frente pela Regulação da Relação Público-Privado em Alimentação e Nutrição. Em 2014, o Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran), maior evento da área, foi contestado devido ao patrocínio de grandes empresas. No mesmo ano, o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, adotou a recomendação forte contra os ultraprocessados.

“O Conbran era um congresso que você passeava numa feira da indústria de alimentos e depois entrava na sala e falava sobre fatores de risco de doenças crônicas. Era a própria contradição”, diz Elisabetta Recine, professora da Universidade de Brasília e presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Um dos méritos do World Nutrition foi inaugurar no Brasil, e contribuir para isso no plano internacional, a discussão dos conflitos de interesse em nutrição. Esse é até hoje um tema extremamente encoberto e complexo. Em nome de acabar com a fome no mundo, ou fazer as criancinhas comerem melhor, você tem práticas profundamente conflitantes. E isso fica encoberto pela declaração da intenção.”

Em nível regional

Em 2015, nova contestação. Um abaixo-assinado pediu a proibição do patrocínio da indústria de bebidas e alimentos nos eventos da Sociedade Latino-americana de Nutrição (Slan). O documento era assinado por alguns dos maiores nomes da pesquisa científica na região, e resultou na criação de um grupo de trabalho para discutir os limites da relação com as empresas.

Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e coordenador do grupo que redigiu o Guia Alimentar, estava entre os signatários do manifesto. Ele tem sido uma das vozes mais fortes no Brasil contra os efeitos da relação entre ciência e indústria de ultraprocessados. “Chega a indústria de alimentos ou o laboratório farmacêutico e oferece aos organizadores recursos para bancar todas as despesas. Todos os problemas financeiros são solucionados e ainda há a possibilidade de a sociedade profissional ficar com boa parte do dinheiro arrecadado com as inscrições”, afirma. “Há formas de se organizar congressos sem fontes de financiamento com conflito de interesses, mas dá trabalho. Então, muitos preferem a via mais fácil e se tornam dependentes deste financiamento.”

Esse é o dilema que se coloca tanto para a realização de pesquisas como de eventos: saindo o setor privado, o que ficará no local? Os próprios organizadores do evento no Rio em 2012 entendem que o apoio do Ministério da Saúde naquele momento foi crucial. Sem ele, portanto, seria difícil dar conta de todas as despesas. Muitos dos membros das sociedades científicas estão com mensalidades atrasadas, dificultando o custeio do básico.

No caso das pesquisas, o setor público tem enxugado cada vez mais os recursos, criando uma grande dificuldade para os cientistas. Na USP, ex-reitores e quadros altos das últimas administrações têm defendido que cada unidade se encarregue de buscar dinheiro no setor privado como der. Isso cria um dilema ético, já que as empresas não financiarão nada que lhes seja desfavorável. E um dilema prático, já que é inimaginável que as empresas se interessem por certos assuntos. A universidade pública é, justamente, o espaço em que certas coisas podem existir a despeito do lucro.

“Penso que uma solução seria a criação de fundações de apoio a pesquisa que fossem independentes e que recebessem doação de empresas sem estabelecimento de qualquer relação contratual com o objetivo das pesquisas”, sugere Veridiana Vera de Rosso, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Alimentos, Nutrição e Saúde da Universidade Federal de São Paulo. “Acho extremamente prejudicial o financiamento de grandes eventos científicos pelo setor privado, tendo em vista que a programação científica é também frequentemente direcionada para atender aos interesses das empresas.”

Em agosto de 2017, o comitê criado pela Sociedade Latino-americana de Nutrição emitiu um documento que recomenda evitar relações com a indústria de ultraprocessados. O texto indica que o conflito de interesses não é corrupção, mas uma porta aberta à corrupção, e que é comprovado que leva a distorções na ciência. Por fim, alerta que essa situação é mais grave na área de saúde devido aos impactos que as decisões podem ter na vida da população. “Estou muito otimista de poder organizar um congresso livre de conflito de interesses”, nos disse Juan Rivera, atual presidente da sociedade.

Daqui por diante, o patrocínio dessas empresas só será aceito caso se comprove indispensável, e ainda assim após passar pelo crivo de um comitê. Deve-se também evitar a distribuição de brindes e de material promocional de qualquer tipo. Simón Barquera, do Instituto Nacional de Saúde Pública do México e um dos grandes nomes da América Latina na definição de políticas públicas em alimentação, encabeçou o grupo que definiu as regras. “Temos que nos mover a uma agenda real, a uma agenda que não seja a da indústria”, diz. Ele alerta que a situação é muito mais complexa do que se pensa e que em alguns casos pode ser necessário recorrer a especialistas em ética para definir o que é conflito de interesses. “Não é dividir a sociedade acadêmica entre os que têm e os que não têm. Não dá para dizer que quem tem conflito deve sair daqui e não falar nunca mais. O que se tem que fazer é fomentar uma cultura de transparência e de gestão desses conflitos.”

Reação

O conjunto de ações suscitou uma reação no grupo de pesquisadores mais favoráveis a relações com a indústria. “Chega de arrogância e extremismo nos congressos de Nutrição!”, dizia um abaixo-assinado criado por um grupo que se intitulou Movimento Nutrição Saudável.

O contra-manifesto atacava especificamente o abaixo-assinado apresentado durante o evento latino-americano e fazia uma defesa das empresas, vistas como promotoras de inovação, empregos e desenvolvimento econômico. Acusava ainda haver uma “ditadura de opinião” e uma tentativa de constranger profissionais, afastando do debate o bom senso necessário ao exercício da ciência.

“O que temos assistido em nossos eventos científicos? Um ativismo político ensaiado, com doses de autoritarismo, arrogância na maneira de se comunicar e desrespeito a cientistas, pesquisadores, professores e demais participantes dos eventos. A obesidade tem causas multifatoriais, enquanto as políticas públicas em nutrição são ineficazes e as intervenções, pífias. Nesse cenário desolador, os ativistas querem atribuir culpa exclusiva ao consumo dos alimentos classificados inapropriadamente em função de seu processamento.”

O texto fazia um desagravo a Sonia Tucunduva Philippi, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela é quem trouxe ao Brasil a pirâmide alimentar, que funcionava como instrumento de orientação para profissionais até o Guia de 2014. O grupo de Carlos Monteiro adotou um slide com um XIS sobre a pirâmide, indicando que aquela era havia acabado.

“São manifestações não éticas que tentam impor modelos autoritários e que, se contrariam o atualmente estabelecido pelo grupo, são recebidos com esse tipo de postura do X na figura”, disse Sonia. “Acredito que houve uma intenção de agressão pessoal, mas os trabalhos e minha reputação na área fizeram com que esse ato isolado trouxesse adesão e maior solidariedade ao meu trabalho.”

Foto: Ideias na Mesa

Enquanto isso, uma nova gestão da Associação Brasileira de Nutrição resolveu que o Conbran adotaria uma postura mais rigorosa na relação com empresas. Logo de cara esse compromisso foi publicizado para evitar que, na hora da dificuldade, um documento de uso interno acabasse desconsiderado para dar lugar às políticas de patrocínio tradicionais.

Bebidas de baixo teor nutricional, alimentos desbalanceados, transgênicos, produtos milagrosos e redes de fast-food foram os primeiros riscados da lista. Daí por diante, houve um longo caminho a percorrer na organização do congresso de 2016, em Porto Alegre. O primeiro passo era analisar as informações nutricionais de todos os produtos fabricados por uma empresa interessada em financiar o evento. Quem passava por essa etapa tinha as relações políticas, ambientais e trabalhistas analisadas: não adianta fabricar um produto excelente se no fornecimento de matérias-primas são incentivados o desmatamento e o trabalho escravo.

“A prática foi muito trabalhosa. Eu me decepcionei muitas vezes, especialmente com as empresas que trabalham com orgânicos. O que a gente percebeu é que algumas empresas estão mais buscando um nicho de mercado do que acreditando naquilo. Isso me deixou muito decepcionada. Se você olhar nossa lista de patrocinadores, a gente não tem uma empresa de grande porte, nem de médio”, diz Carolina Chagas, que comandou o processo de captação de recursos. “Tem colegas que entendem isso como uma política totalmente xiita, que os nutricionistas têm que ver os dois lados para poder escolher. A questão não é essa. A questão é que essas empresas se utilizam desses espaços para fazer o que já fazem todos os dias, que é um marketing de produtos que não valem a pena, de um produto que não é saudável. É no mínimo incoerente você falar sobre saúde num espaço que não tem saudabilidade.”

Ela conta que a política mais restritiva fez com que o congresso simplesmente se pagasse, sem dar o lucro de outros anos. A decisão por fazer um encontro mais enfático em relação às causas da obesidade também mexeu em aspectos simbólicos. Optou-se por incentivar o consumo de alimentos tradicionais locais. E os restaurantes do pavilhão onde ocorreu o encontro optaram por tapar as portas das geladeiras de refrigerantes, desestimulando o consumo. Para 2018, em Brasília, a Asbran decidiu manter a política. “Uma coisa que a gente delimitou desde o começo é que a programação científica é discutida por uma comissão científica. Não existe assédio por nenhum tipo de empresa nessa programação”, resume Carolina.

Fonte – João Peres, O Joio e o Trigo de 01 de fevereiro de 2018

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