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Os quatro dossiês maiores da degradação ambiental

Ilustração: LPS

Ao iniciar esta coluna para o Jornal da Unicamp, voltada para o exame das crises socioambientais contemporâneas, convém definir seu campo de reflexão. Em sua formulação mais abrangente e essencial, as múltiplas crises socioambientais de nosso tempo podem ser agrupadas em quatro dossiês maiores: 1. Energia; 2. Deterioração antropogênica da biosfera; 3. Poluição e intoxicação química dos organismos; 4. Concentração do poder econômico e político nas mãos das corporações e regressão da democracia (pois este quarto dossiê é ao mesmo tempo a principal causa dos três precedentes e o principal obstáculo a toda ação política concertada no sentido de mitigar seus impactos).

A esses quatro dossiês pertencem, de um modo ou de outro, todas as crises de nosso tempo. Desestabilização do sistema climático, aquecimento global, declínio das florestas, dos corais, da vida marinha, dos vertebrados, dos polinizadores, eutrofização e acidificação do meio aquático, escassez de recursos hídricos, empobrecimento dos solos, elevação do nível do mar, pressões demográficas crescentes, ameaças à segurança alimentar, aumento incontrolável de resíduos, intoxicação agroindustrial dos organismos, riscos tecnológicos imponderáveis, desigualdade inaudita de ativos e da renda, crise do emprego, dos governos, dos Estados, da governança global e da diplomacia, recrudescimento das guerras, do obscurantismo ideológico e religioso, deslocamentos brutais de contingentes humanos e animais, infestações, riscos de epidemias e crises sanitárias decorrentes de todos esses fatores, e tudo isso em aceleração. Essas são, por trás do noticiário da grande imprensa, as tendências realmente definidoras do século XXI.

Ninguém com acesso à imprensa séria e à divulgação científica as ignora. E porcentagens crescentes da humanidade sofrem suas consequências na própria pele. A percepção, informada ou vivida, de que o avanço imenso do bem-estar social propiciado pela tecnologia e pela industrialização desde o século XVIII está sendo anulado pelo crescente custo ambiental desse avanço ganha terreno a passos largos. Ela se tornou nas últimas décadas o mote central de inúmeras ONGs e coletivos científicos e, ao fim e ao cabo, um dos mais inquestionáveis consensos da história do saber. Kevin Anderson, vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Research e conselheiro em mudanças climáticas do governo britânico, bem o resume: “Estamos conscientemente enveredando em direção a um futuro fracassado”.[1]

A ideia de um futuro pior é inédita em nosso tempo. Nas Idades Moderna e Contemporânea – moldadas por revoluções tecnológicas e contínuo incremento do bem estar humano (excluídas as sociedades e espécies vitimadas pela expansão ocidental) –, a perspectiva de um futuro substancialmente pior é uma inédita inversão histórica de tendência. De onde a descrença ainda generalizada nessa ideia e a crescente resistência política, ideológica e psicológica à ciência e a seus alertas, mesmo de parte dos setores com maior educação formal (tradicionalmente abertos aos prognósticos científicos), fenômeno igualmente inédito na História Contemporânea.

De fato, embora os eleitorados sejam os alvos prioritários das campanhas de desinformação fomentadas pelos interesses políticos e corporativos em jogo, não se deve menosprezar sua eficácia na Universidade, pois é grande ainda a crença entre nós de que os impactos ambientais criados pela lógica da acumulação podem ser superados aplicando-se corretivos a essa lógica. Educado no paradigma antropocêntrico de que a natureza é recurso, algo disponível para o homem, o mundo universitário – cientistas sociais e cientistas da natureza – consideram-se em geral aptos a lidar com problemas ambientais como problemas derivados de más escolhas tecnológicas, de má gestão econômica ou de políticas que servem a interesses das elites. É claro que precisamos de políticas voltadas para os interesses populares, tecnologias de menor impacto ambiental e de todo o receituário dos economistas: taxa carbono, fim dos subsídios aos combustíveis fósseis, precificação e internalização dos custos ambientais, princípio do poluidor-pagador, ganhos de eficiência, minimização do desperdício, descolamento, economia circular etc.

Se adotadas, repito, essas propostas seriam muito benéficas. Como o seriam, se adotados, os tratados, protocolos e acordos de governança global firmados nos últimos 45 anos, visando mitigar a degradação do sistema Terra. O problema de fundo, contudo, é que nem essas propostas, nem as resoluções diplomáticas são efetivamente adotadas, malgrado suas vantagens evidentes, inclusive, até certo ponto, para a própria lógica da acumulação capitalista. E não o são porque essas resoluções e essas políticas econômicas decerto mais racionais perderam o poder de influir de modo decisivo sobre as estratégias corporativas. Os grandes conglomerados tornaram-se mestres do jogo e os Estados, dependentes deles e identificados com a forma mentis corporativa, tornaram-se Estados-Corporações ou, como no caso dos Estados Unidos de Donald Trump, Corporações-Estados.

A questão ambiental não é, talvez, insolúvel. Mas o primeiro passo para tentar resolvê-la é reconhecer sua gravidade extrema e, em consequência, atribuir-lhe prioridade absoluta em nossa agenda científica e política. O problema ambiental, em sua essência, não é de má gestão ou de mau comportamento corporativo. Seu significado e sua escala não são apreensíveis pela antinomia eficiência-deficiência ou pela oposição entre regulamentação estatal e liberalismo selvagem. O problema ambiental não é, em suma, da esfera do saber tradicional. Por sua escala global inaudita, pelo emaranhado de problemas interferentes que suscita, ele é algo radicalmente novo na história humana e infinitamente mais complexo que o campo de reflexão de qualquer disciplina acadêmica específica. Ele requer, em última instância, uma redefinição filosófica da posição do homem na biosfera e, no âmbito particular da Universidade, uma nova interação entre os saberes. Trata-se, numa palavra, de um problema que abrange as relações problemáticas e “insustentáveis” entre, de um lado, nossa espécie, nossa história e nossas estruturas ideológicas profundas, e, de outro, os parâmetros do sistema Terra que permitem e ainda fazem aprazível a vida em nosso planeta. Na medida de suas forças, esta coluna aspira ser parte desse esforço coletivo de reflexão e de ação política.

[1] Citado por Terry Macalister, “Complacency threatens climate change action”. Climate News Network, 6/IV/2017: “We are knowingly meandering into a failed future”. http://climatenewsnetwork.net/complacency-climate-change-action/.

Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).

Fonte – Jornal da UNICAMP de 15 de maio de 2017

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