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Os riscos que o País corre se não limitar a possibilidade de aquisição de suas terras por estrangeiros

Jacques Tavora Alfonsin, advogado do MST e procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul, comenta parecer da Advocacia Geral da União, aprovado pela Presidência da República e publicado dia 23 de agosto passado, sobre as bases legais que autorizam a União a limitar o poder de adquirir terra, no Brasil.

Com a proximidade das eleições, a maioria do povo está com a atenção voltada para o que vai acontecer no próximo dia 3 de outubro. Assim, a repercussão do parecer 01/2008, da Advocacia Geral da União, aprovado pela Presidência da República e publicado dia 23 de agosto passado, sobre as bases legais que autorizam a União a limitar o poder de adquirir terra, no Brasil, não tem tido a repercussão que dele era de se esperar, com a relevância que a matéria exige.

A questão toda se situa em torno de algumas disposições da Constituição Federal que, expressamente, restringem a liberdade de iniciativa e o investimento estrangeiro, quando esse vai utilizar a propriedade (aquisição) ou a posse (arrendamento) de terras no Brasil. O artigo 20 § 2º, por exemplo, considera a faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres brasileiras, como fundamental para a defesa do território nacional, ali permitindo ocupação e utilização de acordo com o que a lei determinasse.

Essa lei já se encontrava em vigor quando a Constituição foi promulgada (tem o número 6634/79) e, em seu art. 2º, atribuía (como atribui até hoje, pois se encontra em vigor) ao Conselho de Segurança Nacional a competência para dar assentimento prévio para uma série de atos referentes ao uso da dita faixa. Entre tais atos, previam os incisos V e VI deste mesmo artigo: “V – transações com imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro, do domínio, da posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel”; e “VI – participação, a qualquer título, de estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, em pessoa jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural”.

O artigo 171 da nossa Constituição, igualmente, distinguia empresa nacional de empresa nacional com maioria de capital estrangeiro. Essa disposição foi revogada e, justamente por isso, alguns juristas passaram a entender que, com exceção da faixa de fronteira, tinham desaparecido as demais restrições até então existentes, contra a aquisição ou posse de empresas estrangeiras ou nacionais com maioria de capital estrangeiro se estabelecerem aqui sobre nosso território.

Acontece que, desde 1971, a lei n° 5709, que fazia essa distinção, também dispunha sobre posse e propriedade de terra em território nacional, para outros fins, estabelecendo proporção limitada para as aquisições de terra por estrangeiros, não só ratificando aquelas referentes às faixas de fronteiras, mas também restringindo aquisições que ultrapassassem “um quarto da superfície dos municípios.”

E mais. O art. 23 da lei 8629/93 fez referencia à dita lei, reconhecendo-lhe explicitamente, portanto, a sua validade e eficácia: O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica autorizada a funcionar no Brasil só poderão arrendar imóvel rural na forma da Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971. § 1º Aplicam-se ao arrendamento todos os limites, restrições e condições aplicáveis à aquisição de imóveis rurais por estrangeiro, constantes da lei referida no caput deste artigo. § 2º Compete ao Congresso Nacional autorizar tanto a aquisição ou o arrendamento além dos limites de área e percentual fixados na Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971, como a aquisição ou arrendamento, por pessoa jurídica estrangeira, de área superior a 100 (cem) módulos de exploração indefinida.

Essa lei 8629/93, regula também todo o procedimento de desapropriação para fins de Reforma Agrária. Levando-se em conta o fato de que ela obedece um capítulo inteiro da Constituição disciplinando a Reforma Agrária (arts. 184 até 191) e que o art. 225 da mesma também prevê a defesa do meio ambiente como um “bem de uso comum do povo”, tem-se de convir que estas outras disposições constitucionais – isso nem pode sofrer dúvida – estiveram em vigor antes da revogação do art. 171, e estão em vigor até agora, o mesmo valendo para a do art. 176 relacionado com os investimentos estrangeiros em matéria de pesquisa e lavra de recursos minerais. A implementação de uma política pública relevante como a da reforma agrária não pode ficar tolhida de distinguir empresas de diferentes origens e composição de capital se, exatamente por imposição do seu domínio externo, incorrer a mesma em descumprimento da sua função social ou agressão ao meio-ambiente.

Sob esse aspecto, aliás, a história do Brasil não favorece a boa fama desse tipo de presença. Quem lê, entre outros, Celso Furtado (A Formação Econômica do Brasil), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), Ruy Cirne Lima (Terras Devolutas) e Darcy Ribeiro (O processo civilizatório) faz uma idéia bem pouco louvável do que significaram colonização e espoliação das nossas riquezas, patrocinadas por poderes políticos e econômicos externos.

Não por tais revelações se referirem a um passado vencido em anos, os efeitos sociais da atividade estrangeira sobre o nosso território devem ser descartados sem mais, seja para o mal seja para o bem. Uma coisa foi a vinda de imigrantes (maioria pobre), de que dão exemplo italianos e alemães aqui chegados no século XIX. Outra coisa é o que vem acontecendo agora. A diferença está em que aquela gente veio para ficar, e não para retirar daqui o lucro da exploração da terra levando todo o seu resultado para fora do país. Daí poder-se concluir que o mérito deste Parecer da Advocacia Geral da União é muito mais declaratório do que constitutivo. Se ele não tivesse sido publicado, em nada afetaria a vigência das outras disposições constitucionais relativas à matéria que não foram afetadas em nada pela revogação do art. 171 da Constituição Federal. Revogado em 1995, o fato de ter desaparecido a diferença jurídica (!) entre empresas estrangeiras e nacionais com maioria de capital estrangeiro, não fez desaparecer as ditas empresas, interessadas em explorar a nossa terra e, aí, muito menos de revogar as demais disposições da Constituição relacionadas com o problema.

Alguém poderia perguntar, entretanto: afinal de contas, que sentido teve então a revogação de um artigo da Constituição que, justamente, distinguia empresas nacionais de empresas nacionais com maioria de capital estrangeiro? É possível responder-se a uma tal inquietação relembrando o velho conselho hermenêutico de não se fazer dependente a aplicação das leis daquilo que o legislador pretendeu ou não pretendeu (mens legislatoris) e sim o que decorre da presença das disposições legais dentro de um sistema, como ocorre com aquele imposto pela Constituição Federal (mens legis). Da letra e do conteúdo das demais disposições da nossa Constituição, relacionadas com a nossa terra, é impossível deduzir-se que a revogação de um único artigo da mesma, tenha revogado os demais, com tantos ou até mais motivos para fazer a referida distinção. Aliás, uma grande parte do povo parece estar bem consciente disso. O país viveu entre 1° e 7 deste setembro, durante o chamado “grito dos excluídos”, uma campanha nacional traduzida num plebiscito popular, que ainda está contando o número de assinaturas que recolheu, como forma de pressão sobre o Congresso Nacional, para que o mesmo promulgue uma lei, limitando a extensão das propriedades rurais no Brasil, aí inclusive para aquisições feitas por brasileiros. Se isso é considerado necessário para nós, não há de sê-lo para quem vem de fora?

É circunstância que faz pensar a de o próprio parecer da Advocacia Geral da União referir, em apoio da sua conclusão, que, entre alguns dos Estados dos Estados Unidos, como é o caso de New York, até a naturalização como norte-americano se exigir do estrangeiro que lá pretenda se estabelecer com propriedade ou posse de terra. Se isso vale para quem sempre insiste no modelo norte-americano de democracia e de direito, por que não vale para o Brasil?

Quem prega a conveniência do não estabelecimento destas restrições, então, com base na globalização dos mercados, acusa a posição contrária de xenofobia. Polêmica à parte, se essa globalização desequilibra a relação custo-benefício em favor do benefício, não se atina por qual razão as vantagens geradas por esse benefício não devam sofrer, como qualquer outra empresa de investimento, a rigorosa fiscalização e até o poder de intervenção que o Estado tem sobre o seu território, por mínimo respeito a soberania do povo que aqui vive.

Fonte – IHU On-line / Ecodebate de 30 de setembro de 2010

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