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Pampa é um bioma em permanente transformação

Uma palestra que tratou da formação do Pampa e da questão dos recursos hídricos marcou a abertura de um amplo ciclo de estudos promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na noite de quarta-feira (15/3), o professor Rafael Cabral Cruz, da Fundação Universidade Federal do Pampa (Unipampa), proferiu a conferência Bioma Pampa: gestão de recursos hídricos e conservação das águas. Desafios e possibilidades, dando início ao evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, que se estende até junho.

Cruz, no início de sua palestra, disse que não havia certezas para repassar. “Queria poder dar informações positivas, mas trago notícias tristes, fruto de pesquisas e da minha militância como ambientalista”, afirmou. O roteiro que desenvolveu para a palestra foi uma síntese “das incertezas, dos desafios e dos problemas vivenciados dentro do bioma Pampa.”

O propósito de sua palestra era discutir a água no bioma, mas, para tanto, Cruz entendeu que era preciso discutir antes o próprio bioma. Assim, apresentou um panorama da formação da região. “O bioma do início do século 20, quando se começou a discutir preservação ambiental, não tem nada a ver com o bioma de quando o ser humano chegou à região, assim como é muito diferente de quando os colonizadores chegaram”, garantiu. “Isso tudo afeta a água.”

Quatro ciclos

O Pampa teve quatro grandes ciclos de transformação ambiental. No primeiro deles, extinguiu-se a fauna formada por animais de grande porte, como um tipo de tatu cujo tamanho equivalia ao de um automóvel. Para compreender o que ocorreu na região, é necessário retroceder até a África. Na Savana africana, o ser humano se desgastava muito para conseguir alimentos, então sobrava pouca energia para reprodução. Com o tempo, desenvolveu maneiras de se alimentar mais e se cansar menos.

Animais muito rápidos não conseguem manter a velocidade elevada por tempo prolongado. O ser humano é menos veloz, mas sustenta a marcha por mais tempo. Ao perceberem que os animais fogem do fogo, começaram a queimar as savanas, de maneira a conduzir a presa na direção dos caçadores, que acabavam abatendo o animal cansado. “Isso aumentou a eficiência da caça e a economia de energia, fazendo com que o ser humano se espalhasse pelo planeta, chegando até aqui”, descreve Cruz. Isso causou o primeiro grande ciclo de transformação do Pampa.

O ser humano chegou à região que compreende o Pampa no final da época geológica chamada pleistoceno (cerca de 18.000 a 12.000 anos atrás.). O clima era rigorosamente frio e seco, e o nível do mar estava ao menos cem metros abaixo do atual. No holoceno (período que data de cerca de 11,5 mil anos até o presente), o clima era quente e úmido, e o nível do mar, alto. Essas características redundaram em uma tropicalização do Brasil e em uma certa estabilidade dessas condições. A paisagem era aberta, sujeita ao pisoteio dos mamíferos de grande porte da época, o que acabava gerando um controle da vegetação.

Dados do palinograma do município de São Francisco de Assis revelam a concentração e a taxa de acumulação de partículas carbonizadas da região. A presença desses elementos era pequena, mas constante, até cerca de 12.000 anos atrás, quando se registra a chegada dos primeiros seres vivos provenientes da África. A partir daí, as taxas aumentaram de maneira drástica e contínua, até atingir um máximo por volta de 9.000 anos atrás. Conforme Cruz, há uma sincronia entre o aumento da presença de partículas carbonizadas e a extinção da megafauna, há cerca de 8.000 anos. Com o fim do pisoteio dos grandes mamíferos, a vegetação campestre passou a ser substituída por outro tipo adaptado ao fogo.

Chegada dos europeus

O segundo grande ciclo se inicia com a chegada dos europeus ao Pampa, particularmente os jesuítas, que reintroduzem na fauna animais de grande porte. Eles aportaram no Brasil em 1549. Entre 1626 e 1634, fundaram 18 reduções no território do atual Rio Grande do Sul. Em 1638, abandonaram uma estância onde havia 5 mil cabeças de gado. O naturalista espanhol Félix de Azara (1742-1821) estimou que, em 1700, havia 48 milhões de cabeças no Pampa. Ele também descreveu que a queima dos campos, o pastoreio e o pisoteio estavam eliminando capins mais altos, desta forma abrindo espaço para espécies invasoras como malva e cardo.

A terra ficou degradada, por conta do volume de gado, que compactou o solo, mas a degradação não prosseguiu por três fatores: a indústria do charque, que levou à matança intensiva do gado; os cercamentos das propriedades, a partir de 1870; e o manejo de lotação. Isso gerou controle populacional do rebanho.

Revolução verde

A terceira grande transformação verificada no Pampa começou com a chamada revolução verde, quando imigrantes alemães e italianos introduziram a agricultura em regiões do Rio Grande do Sul na segunda metade do século 19. Esse processo, caracterizado pela substituição de ecossistemas nativos por agroecossistemas, teve grande impacto sobre a Mata Atlântica, que passou a ser suprimida para dar espaço à lavoura. A interferência no ambiente natural se intensificou depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando houve uma conversão da indústria bélica para a produção de maquinário agrícola. “A fábrica de tanques passou a fazer tratores; a que produzia TNT e gás Sarin, agrotóxicos”, descreve Cruz.

Das culturas que preponderam no bioma Pampa, a que desperta maior preocupação é a soja. O crescimento desse cultivo “está em ritmo violento nas áreas de campo, e isso altera o ciclo hidrológico”, alerta Cruz, sempre salientando o quanto as transformações do uso da terra afetam o comportamento hídrico. Além disso, a perda da biodiversidade favorece o aparecimento de pragas, o que demanda o uso de mais agrotóxicos. “A produtividade dos pomares está diminuindo em razão do uso excessivo de veneno”, observa. Outra consequência é a eutrofização e contaminação de ecossistemas terrestres e aquáticos. “Há resíduos de agrotóxicos em bacias de água do Rio Grande do Sul.”

Mudanças climáticas

A quarta etapa de transformação do Pampa é marcada pelas mudanças climáticas antropogenicamente induzidas, ou seja, derivadas de atividades humanas. “Perdemos controle local sobre o que vai acontecer conosco”, afirma Cruz. Trata-se de um problema de escala global, cuja solução depende de uma mobilização mundial.

Ele apontou uma série de fenômenos que evidenciam o problema. O aquecimento global está acontecendo. Há excesso de chuvas concentradas em poucos meses, e o encharcamento diminui a produtividade da lavoura. “Isso cria mais fungos na lavoura, tanto que o agrotóxico mais usado no ano passado foi fungicida”, observa. Na cidade, aumenta a ocorrência de enchentes. Nas encostas, acontecem deslizamentos. “Catástrofes levam à desestruturação da sociedade”, projeta.

Os problemas decorrentes das mudanças climáticas são globais. “Populações do norte da África migram para Europa não por causa de guerra, mas devido à falta de água”, aponta. No Pampa, Cruz observa que está ocorrendo um processo de savanização, caracterizado pela ocorrência de uma estação seca e outra chuvosa.

O pesquisador salienta que as duas primeiras fases de transformações do Pampa – a chegado do ser humano à região e a reintrodução da fauna de grande porte pelos europeus –, por serem longas, permitiram que o ambiente se adaptasse à interferência humana. As outras duas – a revolução verde e as mudanças climáticas –, no entanto, provocaram grandes transformações em pouco tempo. “Não há genética que dê respostas rápidas de adaptação, então ocorre a degradação do ambiente”, descreve.

O cenário é nada alvissareiro não apenas pelos efeitos das mudanças climáticas, mas também por conta da inépcia do poder público no que tange às questões hídricas. “No Brasil, não há cultura de monitoramento das águas dos rios, o que impede que se faça gestão hídrica”, acusa Cruz. “Temos um quadro de incerteza geral. É preciso ter humildade em dizer que nossas ferramentas não dão mais a segurança que a sociedade necessita em gestão hídrica.” O pesquisador aponta que o desafio da hidrologia moderna é criar uma hidrologia adaptada às mudanças climáticas. A solução passa pelo comprometimento público e pelo espírito coletivo para cobrar ações do estado.

Ciclo de estudos

A discussão promovida pelo IHU sobre os biomas brasileiros gerou um ciclo de estudos que abrange diferentes áreas de conhecimento, em perspectiva transdisciplinar, agregando interesses especialmente dos Programas de Pós-Graduação em Biologia e em Geologia da Unisinos, bem como das disciplinas e atividades acadêmicas voltadas para ética/bioética ambiental, ecologia e sustentabilidade. A programação inclui conferências sobre biomas brasileiros, em articulação com questões de biologia, ecologia, ecologia integral, ética ambiental, ecoteologia, mudanças climáticas; atividades artísticas e culturais; exibição de vídeos sobre os seis principais biomas brasileiros; ciclo de estudo em Educação à distância (EAD); publicação impressa e digital de um número especial da revista IHU On-Line, de Cadernos IHU Ideias e Cadernos Teologia Pública, bem como publicação de entrevistas e notícias sobre o mesmo tema no site do IHU.

A programação completa do ciclo pode ser acessada aqui.

Fonte – Vitor Necchi, IHU de 18 de março de 2017

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