Por Elton Alisson - Agência FAPESP - Um consórcio composto por pesquisadores de mais de…
Quando os pecuaristas terão orgulho de mostrar suas fazendas na Amazônia?
Gado apreendido dentro dos limites da Flona do Jamanxim na Operação Boi Pirata (Foto: Nelson Feitosa/Ibama)
Cada vez mais os consumidores buscam informação sobre a origem dos produtos. Mas no Brasil muitos pecuaristas resistem a revelar de onde vêm seus bois
Em uma de nossas idas a trabalho à cidade de Madison, nos Estados Unidos, conhecemos o Graze (pastar, na tradução para o português), um restaurante que tem orgulho de mostrar a origem dos ingredientes que utiliza em sua culinária. Logo na entrada, nos impressionou um mapa do estado (Wisconsin) mostrando o restaurante conectado a dezenas de fazendas, suas fornecedoras de vegetais, carne, queijos e outros produtos. Já dentro do restaurante, bastante cheio, observamos um imenso painel com a foto do produtor homenageado do mês e as características de seus produtos e da fazenda. Curiosos, entramos no site do Graze e encontramos o mapa e a lista de suas fazendas fornecedoras.
Mostrar a fonte dos alimentos é uma tendência mundial, pois cada vez mais os consumidores buscam informação sobre a origem dos produtos que consomem, seja por preocupações com a qualidade, com o cuidado com os animais, com os trabalhadores ou com o impacto ambiental da produção.
Entretanto, no Brasil, muitos produtores rurais resistem a revelar o que há em suas fazendas. Problemas ambientais, trabalhistas e fiscais explicam essa resistência. Mas agora há uma batalha para aumentar a transparência sobre as fazendas como forma de eliminar esses problemas, especialmente na Amazônia, que abriga 40% do total do rebanho bovino nacional. Na região, cerca de 86 milhões de cabeças de gado pastam em 61 milhões de hectares, distribuídos em 400 mil fazendas. Os pastos equivalem a dois terços do desmatamento total na região, que muitas vezes é ilegal e em todos os casos libera uma enorme quantidade de fumaça quando a floresta é queimada. Para agravar a imagem da pecuária, o setor ainda lidera a ocorrência de trabalho escravo e conflitos de terra.
Como é difícil controlar tantos fazendeiros, a pressão contra o desmatamento e o trabalho escravo chegou aos frigoríficos que compram gado das fazendas e fornecem carne e subprodutos aos supermercados e açougues e couro para a indústria. Em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará processou frigoríficos que compravam gado de áreas embargadas por desmatamento ilegal e alertou os receptadores da carne e do couro que eles também poderiam ser processados se continuassem a comprar dessas empresas. Ademais, o Greenpeace aumentou a pressão ao protestar contra grandes empresas que compravam desses frigoríficos.
Para não perder o mercado, 13 frigoríficos no Pará assinaram compromissos (Termos de Ajustamento de Conduta – TAC) de não comprar mais gado de áreas desmatadas após 2009 e a atender a outros quesitos, como ter registro no Cadastro Ambiental Rural – CAR (que contém um mapa da fazenda), não estar em Terras Indígenas e Unidades de Conservação (onde a existência de fazendas é proibida) e não constar nas listas de embargo do Ibama e de trabalho escravo do Ministério do Trabalho e Emprego. Desde então, o acordo se espalhou. Atualmente, metade dos frigoríficos na Amazônia, que somam 70% da capacidade de abate total na região, assinou o TAC da Pecuária. Para a metade que não assinou, que soma 30% da capacidade de abate, não encontramos evidências que estejam controlando a origem do gado. Após o acordo, o desmatamento caiu até 2012, mas desde então aumentou em 75% até 2016.
O sucesso do TAC é limitado pela falta de informação pública e confiável sobre as fazendas, a origem do gado e a implementação dos acordos por alguns dos frigoríficos.
Alguns dos frigoríficos signatários do TAC estão checando as informações da fazenda de engorda de onde compram o gado gordo – isto é, verificam se a fazenda está registrada no CAR, cruzam o mapa do CAR com o mapa do desmatamento e se a fazenda não está na lista de áreas embargadas do Ibama e a lista de trabalho escravo. Porém, as informações sobre o CAR não são plenamente confiáveis, pois o registro é declaratório. Por exemplo, ouvimos casos de que fazendeiros deixaram parte do desmatamento ilegal fora do mapa de seus imóveis, mas continuaram a usar a área desmatada ilegalmente. Encontramos ainda casos em que o fazendeiro redesenhou o mapa do imóvel depois do primeiro registro no CAR para omitir o desmatamento ilegal. Fazendeiros também declaram que criam gado em fazendas sem CAR (inclusive em Terras Indígenas e Unidades de Conservação) e depois vendem o gado por meio de fazendas com CAR; caracterizando uma lavagem do boi ilegal.
Esse tipo de manobra provavelmente explique por que a bancada ruralista queria substituir o ministro do Meio Ambiente depois que ele autorizou a divulgação dos polígonos dos imóveis registrados no CAR – o que é uma transparência parcial, pois o ideal seria divulgar inclusive quem são seus donos. O medo da transparência fez o Confederação Nacional da Agricultura – que representa os produtores rurais – prometer processá-lo, afirmando que a “divulgação desses dados coloca em risco, inclusive, a segurança nacional”. Essa atitude contrasta com o consenso mundial de que a transparência fundiária ajuda os negócios, pois facilita as transações comerciais. Existe inclusive um ranking global da transparência dos bens imóveis que é publicado pela empresa pública JLL (Jones Lang LaSalle), sediada em Londres desde 1783. Dentre os 139 itens considerados no índice está a acessibilidade pública ao registro de imóveis. Entre 109 países, o Brasil é classificado como semitransparente, ocupando a 33ª posição, abaixo da China, na 32ª posição. Nos Estados Unidos (quarto na lista) os dados sobre os donos e os valores dos imóveis ficam disponíveis na internet.
Porém, mesmo que os mapas do CAR fossem perfeitos, apenas a checagem da fazenda de engorda não é suficiente para deter o desmatamento. Isso porque tais fazendas muitas vezes compram bezerros e novilhos de outras fazendas (chamadas de cria e recria) que não são verificadas pelos frigoríficos. O segundo maior frigorífico do Brasil indicou que 50% dos bois abatidos em suas plantas na Amazônia Legal pastaram apenas em uma fazenda. A outra metade, ainda segundo esse frigorífico, passou por mais de uma propriedade antes de chegar ao frigorífico. E essa parte da produção segue desconhecida e sem monitoramento. Assim, o fazendeiro criador (um fornecedor indireto para o frigorífico) pode desmatar e não ser detectado pelo frigorífico.
Bebedouro para o gado. Com o suprimento de água, os bois não pisoteiam as margens dos rios (Foto: Divulgação – Pecsa)
Uma forma de verificar a origem indireta do gado seria registrar a identidade e o histórico de criação de cada animal. Um animal rastreado é identificado após o nascimento e recebe um marcador (como um brinco ou uma cápsula inserida em seu estômago) que segue por todas as fazendas por onde passa. Assim, o frigorífico poderia checar se o boi gordo pastou em alguma fazenda desmatada ilegalmente – isso se as informações sobre as fazendas e do gado estivessem disponíveis publicamente.
Fazendeiros brasileiros que vendem para mercados mais exigentes, como a União Europeia, adotam o rastreamento individual dos animais (Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos – Sisbov). Mas a maioria dos fazendeiros não adota o rastreamento, pois o mercado nacional, responsável por cerca de 80% do consumo do gado brasileiro, não demanda. Além disso, houve intenso lobby do setor rural para enfraquecer o Sisbov, pois a pecuária também tem sido usada para sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, como mostram casos associados à Operação Lava Jato (JBS, petrolão).
O medo da transparência também faz políticos e fazendeiros barrarem o acesso ao único dado governamental sobre o transporte de gado entre as fazendas, as Guias de Trânsito Animal (GTA). Antes de transportar o gado, os fazendeiros devem preencher nas guias a quantidade de animais, a faixa de idade, a finalidade (se para engorda em outra fazenda, para abate etc.) e a identificação da origem (município, nome da fazenda, CPF ou CNPJ do proprietário) e do destino (município, nome da fazenda ou do frigorífico, CPF e CNPJ). Essa ficha acompanha o gado até o destino, e os dados, no final, são registrados pelo governo para ajudar na identificação de possíveis fontes de doenças, como a febre aftosa.
Embora os dados da GTA não identifiquem cada animal individualmente, eles ajudariam a identificar se uma fazenda comprou de outras onde ocorreu desmatamento e, assim, detectar riscos. Os órgãos de controle sanitário costumam negar o acesso público à GTA justificando que os fazendeiros passariam a fraudar o documento se soubessem que os dados são usados para o controle ambiental. Mas no Pará, o MPF demandou que a Adepará – Agência que emite as GTAs no estado – disponibilizasse as GTAs para que o Ibama avaliasse a venda de gado de áreas embargadas por desmatamento ilegal. A partir dessa informação o Ibama executou a Operação Carne Fria, que embargou frigoríficos acusados de comprar gado de fazendas embargadas. Infelizmente, o ministro do Meio Ambiente divulgou um vídeo dizendo que a operação foi inoportuna, pois o setor e a economia nacional já estavam bastante prejudicados pela Operação Carne Fraca, deflagrada uma semana antes, que revelou fraudes sobre a fiscalização da qualidade de carne.
Se os frigoríficos instalados na Amazônia operassem com capacidade máxima de produção, poderiam alimentar 16 milhões de pessoas anualmente. Dessa forma, é um risco e um custo muito alto para o setor seguir escondendo os bois a troco de irregularidades ambientais desnecessárias. Desnecessárias porque a Amazônia tem mais de 10 milhões de hectares de pastos degradados e a recuperação de partes deles seria suficiente para triplicar a produtividade, aumentando ganhos econômicos e reduzindo a pressão sobre a floresta (se acompanhada de fiscalização), sem a necessidade de derrubar uma árvore sequer. Enquanto isso não ocorre, os fazendeiros que desmatam ilegalmente, usam trabalho análogo a escravo e praticam corrupção, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro consolidam uma imagem negativa do setor e continuam tentando esconder o boi. Até quando?
Quando os açougues, supermercados e restaurantes do Brasil e do mundo terão orgulho de mostrar as fazendas de gado de onde seus fornecedores compram gado na Amazônia?
Paulo Barreto e Ritaumaria Pereira são pesquisadores do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon)
Fonte – Blog do Planeta de 11 de setembro de 2017
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