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Se o pássaro não canta é um mau sinal

Foto: Pierre Dalous/Wikimedia CommonsFoto: Pierre Dalous/Wikimedia Commons

É raro acontecer com qualquer um de nós, leitores: os olhos passam pelo noticiário e nos damos conta de que está registrado ali um fato que marca a humanidade: um ponto de virada, o começo ou o fim de algo poderoso, um marco. Dias atrás tive essa experiência ao ver a capa do francês Le Monde. Visitei o site do jornal e, como alguém que cresceu lendo notícias no papel, quis conferir a reprodução da edição impressa. Havia dois assuntos em destaque. A detenção do ex-presidente Nicolas Sarkozy, acusado de receber doação de campanha do falecido ditador líbio Muamar Kadafi, é impactante, claro. Mas nada que nós, brasileiros, não tenhamos experimentado com a dupla presidente-empreiteiro.

De qualquer forma, não era essa a manchete do Le Monde.

A manchete era o desaparecimento dos pássaros dos campos franceses. Contava a reportagem que nos últimos 15 anos a presença de pássaros diminuiu 30%. Pior: em 2016 e 2017 a velocidade da desaparição aumentou, o que indica que a causa do problema ganha força, que não é um fenômeno passageiro. Dois estudos conduzidos separadamente chegaram ao mesmo número: de cada três pássaros que gorjeavam, piavam ou chilreavam nos campos franceses em 2002, um silenciou. O “desaparecimento massivo” de aves silvestres, termo usado por um dos pesquisadores, está acontecendo agora, embaixo dos nossos narizes.

Ao ler uma notícia dessas, temo estar testemunhando uma tragédia. Como acontece em pesadelos, tenho necessidade de perguntar se mais alguém está vendo o que vejo, se mais alguém sente o medo que sinto.

Um cientista conta ao Le Monde que se supunha que a redução tivesse atingido o auge nos anos 80, quando a agricultura se intensificou com o uso de maquinário, fertilizantes e pesticidas. De lá para cá, teria havido uma estabilização. Mas não é assim; os campos e florestas franceses estão ficando mais silenciosos, ano após ano. Por quê? A causa provável é o surgimento de novos herbicidas que atingem não somente as pragas agrícolas, mas os insetos em geral. Como mesmo os pássaros que supomos totalmente herbívoros comem alguns insetos, principalmente nas primeiras semanas de vida, o sumiço de insetos provoca automaticamente o sumiço de pássaros.

É triste esse empobrecimento do planeta, que cada geração entrega mais exaurido para a geração seguinte. Os pássaros que segundo Verlaine sonhavam nos galhos das árvores à luz do luar e que Prévert retratava (“Se o pássaro não canta é um mau sinal”), os pássaros franceses, os pássaros do mundo, eles vão desaparecendo e fazendo dos campos, florestas e quintais “um tédio, desolado por cruéis silêncios”, como escreveu Mallarmé.

Recorro aos poetas para respirar um pouco. O assunto é difícil. A favor da manutenção das coisas como estão sempre há o argumento de que é preciso alimentar o mundo. Argumento malicioso porque sabemos que, se o mundo passa fome, não é por causa da falta do que comer. Tudo aponta para a necessidade de mudança de paradigma, como disse um dos cientistas franceses, para a “incorporação da biodiversidade silvestre no modelo econômico da agricultura”.

O “mesmo desaparecimento massivo” de pássaros deve estar acontecendo em todos os países de agricultura moderna. Eu ouvi o alarme tocar em francês, temo que um dia ele soará em português.

Fonte – Marleth Silva, Gazeta do Povo de 24 de março de 2018

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