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Soberania alimentar e territorial brasileira em xeque

Mais de três milhões de hectares de terras brasileiras estão hoje nas mãos de 20 grupos estrangeiros, uma média de 137 mil hectares por grupo, segundo dados da ONG canadense Grain, que apoia pequenos agricultores. Pela lei brasileira atual, empresas estrangeiras podem comprar terras no Brasil com restrições, mas para desespero de trabalhadores rurais, organizações socioambientais e até mesmo as Forças Armadas, isso pode mudar muito em breve.

O governo Temer pretende aprovar, por meio de uma Medida Provisória, um projeto similar ao PL 4059/12, que libera a compra de até 100 mil hectares de terras brasileiras por multinacionais – e esse total pode chegar a 200 mil hectares por meio de arrendamento. Para se ter uma ideia, 100 mil hectares correspondem a cerca de 1 mil quilômetros quadrados ou três vezes a área de uma cidade grande como Belo Horizonte.

Há hoje muito descontrole e distorção nos dados disponíveis sobre registro de terras por estrangeiros por parte dos cartórios e do Incra, devido a inúmeras mudanças na regulamentação desde a criação da lei sobre o tema em 1971. E quanto mais confuso o cenário, melhor para quem quer ignorar a legislação. Dados obtidos pelo Inesc com o Incra, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram o detalhamento, por estado, da área de terras por pessoas físicas e empresas, que você pode conferir abaixo.

A Medida Provisória gestada pelo governo Temer tem dois padrinhos graúdos: Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil, implicado até o pescoço em denúncias de corrupção, e o deputado Newton Cardoso Jr. (PMDB-MG), relator da proposta na Câmara e filho do ex-governador de Minas Gerais, Newton Cardoso – a família é conhecida pela tradição ruralista, sendo dona de 100 fazendas pelo país. A MP seria instaurada à revelia de consulta pública e com força imediata de lei, passando por cima de um debate que vem sendo feito há décadas. O quadro, no entanto, pode ser ainda pior: o conteúdo da MP, obtido com exclusividade pela Carta Capital, abre espaço para que o próprio presidente Michel Temer defina o tamanho máximo das extensões de terras que empresas de outros países poderiam comprar. O texto da MP, preparado pela Advocacia-Geral da União (AGU), também não impõe limites à soma de áreas rurais que uma empresa brasileira controlada por estrangeiros, direta ou indiretamente, pode adquirir em uma mesma cidade.

Na prática, a lei 5709 de 1971 permitia que empresas estrangeiras com sede no Brasil comprassem terras no País, mas com restrições. Em 1998, a Advocacia-Geral da União (AGU), baseada no artigo 171 da Constituição Federal, ignorando a Emenda Constitucional 6/1995, interpretou que empresas nacionais e estrangeiras não poderiam ser tratadas de maneira diferente e, por isso, liberou a compra. Com o aumento expressivo na aquisição de terras por empresas estrangeiras a partir dos anos 2000, em especial com a invasão chinesa, a pressão de alguns setores e de movimentos sociais fez com que a AGU emitisse um novo parecer em 2010, reestabelecendo as limitações para que grupos internacionais sejam donos de propriedades agrícolas no Brasil. Por fim, a Portaria Interministerial 4/2014 definiu que aquisições feitas entre 1994 e 2010 não estavam sujeitas ao parecer e às restrições de 2010.

Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que representa mais de 4 mil sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, a finalidade de iniciativas como a desta Medida Provisória é a de entregar terras agricultáveis, água, floresta e minérios dos brasileiros para o capital internacional e especuladores, reduzindo a terra a um mero ativo econômico. “A Contag é contra a aprovação dessas leis, entendendo que isso acirra os processos de concentração das terras, de desterritorialização dos povos e os conflitos agrários, comprometendo a soberania territorial e alimentar”, afirma Zenildo Pereira Xavier, secretário de política agrária da Contag.

Patrus Ananias, deputado federal (PT/MG), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário do governo Dilma e também ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Lula, faz coro. Para ele, o Brasil deveria ter um processo de desenvolvimento que considere nossa realidade territorial a partir das suas vocações e potencialidades, estimulando o micro, pequeno e médios empreendedores nacionais, o associativismo, o cooperativismo e a economia solidária. Basicamente o contrário do que está sendo implantado no país. “Toda a agenda é autoritária e feita a toque de caixa. Estão literalmente passando o trator, sem nenhum debate com a sociedade, com os movimentos sociais, as entidades ligadas ao campo, os atingidos por barragens. Não há diálogo nem com eles nem com a sociedade, a universidade, as igrejas e inclusive dentro do Congresso. A ordem é atropelar sem qualquer processo de reflexão”, acusa Ananias.

O advogado João Batista Afonso, que acompanha pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) os conflitos por terras no sul do Pará – uma das regiões mais violentas do país e do mundo – em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo,  acredita que a pressão sobre índios, ribeirinhos e posseiros tende a aumentar de maneira violenta. “O comércio de terras para estrangeiros aumentará o número de mortes, especialmente em regiões minerais da Amazônia”, diz.

Essas consequências se dão não apenas pelos impactos sobre os trabalhadores rurais, camponeses e povos tradicionais que vivem na Amazônia, mas pelo agravamento dos riscos da perda de controle sobre a preservação e o uso da floresta e da biodiversidade ali presente, incluindo a perda da soberania territorial. Neste fator, pesa a aprovação da Lei 13.178/2015, que permite a legalização de todo tipo de registro cartorial de propriedades rurais em área de fronteira, o que, em conjunto com a flexibilização dos mecanismos de aquisição de terras por estrangeiros, pode afetar profundamente o controle do país sobre seu território.

Para a Contag, que em articulação com a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abras) impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº 5.623, com relatoria do ministro Dias Tofolli) contra a lei, os efeitos da entrega de terras a estrangeiros são amplificados quando se trata da Amazônia. “Não há lugar para os trabalhadores e trabalhadoras nesse projeto do governo ilegítimo, que está impondo medidas de enfraquecimento do Estado, de quebra de direitos e de entrega do país ao sistema financeiro e ao capital nacional e internacional”, afirma Zenildo.

Com a queda de 3,6% no PIB de 2016, configurando o segundo ano consecutivo de recessão no Brasil (algo inédito na história do país), o governo acredita que “o fim das restrições à compra de terras pode destravar investimentos” da ordem de R$ 50 bilhões. Seja via MP, ainda não inteiramente descartada, seja pelo regime de urgência do PL 4059/12 na Câmara, entidades se mobilizam para denunciar os abusos envolvidos em todo o processo e suas próximas consequências.

Ataque global, problemas locais

É importante lembrar que, com as crises financeiras em vários países agravadas a partir de 2008, ampliou-se entre os setores do capital mundial o interesse em exercer o controle sobre as principais demandas atuais, conhecidas como 4F (na sigla em inglês): food (alimentos); feed/fiber (ração/fibras); fuel (combustíveis/agro- energias) e forest (florestas/madeiras).  Também entram na lista a exploração de minérios, o controle da água para consumo e a produção de energia. Historicamente, optou-se no Brasil por um desenvolvimento rural excludente que faz com que a nossa estrutura fundiária seja uma das mais concentradas do mundo, que sejamos campeões no uso de agrotóxicos, muitos deles banidos em outros países, além de registrarmos índices elevados de violência e conflitos em razão da disputa pela posse e uso da terra.

A lógica produtivista do agronegócio, se agravada pela estrangeirização das terras, impactará ainda mais no abastecimento alimentar, pois está pautada na produção de commodities. A cada ano se ampliam as áreas plantadas com as principais monoculturas para exportação (soja, milho), enquanto se reduz drasticamente o plantio das culturas básicas do cardápio da população brasileira, como o feijão, o arroz e a mandioca. A diminuição destas áreas deixa a produção de alimentos totalmente suscetível ao mercado externo e vulnerável às mudanças climáticas.

Como exemplo desta realidade, observa-se que soja e milho, os principais produtos do agronegócio brasileiro para exportação, representam juntos quase 90% do total de grãos produzidos no país. A soja deve atingir 107,6 milhões de toneladas nessa safra, com 33,9 milhões de hectares. Já o milho total deve alcançar 89 milhões de toneladas, com 16,8 milhões de hectares. Enquanto isso, a produção de arroz registra 12 milhões de toneladas e a de feijão 1,38 milhão de toneladas.

Este fato se reflete, por exemplo, no desabastecimento e importação da maioria dos produtos alimentares e no descontrole dos preços com aumento da inflação. “Mais grave é que, ao mesmo tempo em que o agronegócio se fortalece, e se aprofundam os processos de concentração e privatização das terras e dos bens da natureza, ocorre uma redução drástica da intervenção do Estado na realização das ações de reforma agrária, na demarcação de terras indígenas, reconhecimento de territórios quilombolas, regularização de pequenas posses e na criação de Unidades de Conservação”, afirma Zenildo Xavier, da Contag.

Nos últimos 10 anos, por exemplo, a média de famílias assentadas caiu de mais de 76 mil, para 25 mil famílias/ano, segundo dados do Incra. Além disso, não houve sequer uma desapropriação em 2015 por interesse social para fins de reforma agrária, e os decretos que foram publicados em 2016 não estão sendo considerados para concluir os processos para implantação de assentamentos.

O representante da Contag faz questão de destacar que, quanto maior a ausência ou o enfraquecimento da ação do Estado, maior é a violência contra trabalhadores e trabalhadoras rurais. Em 2016, foram registados 54 assassinatos no campo, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). É o maior número de mortes em conflitos agrários dos últimos 13 anos. E para piorar esse quadro, o governo Temer fechou recentemente a Ouvidoria Agrária Nacional, que cumpria importante papel na mediação de conflitos, de busca de solução e agilização de processos fundiários.

“Por isso, é preciso reagir e fortalecer as lutas e a unidade da classe trabalhadora, para enfrentar estas medidas e impedir os retrocessos”, afirma Xavier. Levantando o lema de “nenhum direito a menos”, o secretário da Contag reforça que a luta pela terra e o território, pelo direito de produzir e consumir alimentos saudáveis, pela ampliação e fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, e pela garantia de qualidade de vida e trabalho para os povos do campo, das águas e das florestas permanece urgente e mais atual do que nunca.

Procurados pela reportagem, a Casa Civil, a Advocacia Geral da União e o Ministério da Defesa decidiram não se pronunciar.

Fonte – Maurício Angelo, Inesc de 16 de março de 2018

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