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Teremos de usar água de esgoto

O governador reeleito de São Paulo, Geraldo Alckmin, tem tentado tranquilizar a população da capital de que ela não ficará sem água. Ainda assim, o sentimento na cidade é de apreensão e é grande a torcida para que chuvas torrenciais venham.

Mas, a despeito da estiagem ser apontada como a principal razão do decréscimo constante do volume do Sistema Cantareira — que abastece cerca de 9 milhões de pessoas na região metropolitana —, os níveis de consumo também explicam o grave cenário. A demanda da cidade por água já ultrapassa 4% a quantidade disponível nos reservatórios.

De acordo com a ONG The Nature Conservancy, em menos de dez anos essa diferença poderá chegar a 16%. A crise hídrica pela qual passam algumas das metrópoles mais importantes do mundo é, para o americano David Sedlak, resultado da falta de investimento em redes de abastecimento e tratamento de esgoto.

Professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Sedlak é uma das maiores autoridades no desenvolvimento de tecnologias voltadas para a segurança hídrica das cidades.

Ele é autor de Water 4.0 — The Past, Present and Future of the World’s Most Vital Resource (“Água 4.0 — O passado, presente e futuro do recurso mais vital do mundo”, sem tradução para o português), livro no qual faz uma retrospectiva das revoluções de engenharia que ocorreram nos sistemas de abastecimento.

Nesta entrevista a EXAME, ele conta o que deverá ser feito para que a água potável não seja privilégio de poucos num futuro próximo.

EXAME – Cidades como Los Angeles e São Paulo estão enfrentando crises severas de falta de água. O que pode ser feito para evitá-las?

David Sedlak – Como em São Paulo, há partes dos Estados Unidos onde a população continua crescendo e as pessoas querem consumir cada vez mais água. O sistema fica sob pressão e, quando ocorre uma seca — como a que está em curso agora na Califórnia —, é preciso encontrar outra forma de suprimento.

As opções de importar água acabaram. Todas as fontes conhecidas já têm um destino. Então, ou briga-se pela água disponível, ou encontram-se novas fontes. É aí que entra a virada que chamo de “água 4.0”, que utiliza principalmente reúso de esgoto e dessalinização da água do mar para atacar o problema.

EXAME – Quais foram os momentos marcantes na história de uso da água?

David Sedlak – Os sistemas urbanos de fornecimento de água começaram a se desenvolver há 2 000 anos, na Roma antiga. Foi a primeira metrópole que precisou importar água de dezenas de quilômetros de distância, por meio de aquedutos. É o que chamo de água 1.0.

A evolução para a água 2.0 ocorreu no fim do século 19, quando as metrópoles modernas começaram a filtrar e a clorar a água que ia para as residências. Essa etapa também permitiu a descentralização do esgoto. As casas consumiam água tratada, mas devolviam quantidades estupendas e descentralizadas de esgoto para os rios e para o mar.

A água 3.0 consistiu em tratar o esgoto, algo que nos Estados Unidos só foi universalizado a partir de 1970. Agora, ou adotamos a água 4.0 — o reúso e a dessalinização —, ou sofreremos com a escassez.

EXAME – Mas a dessalinização não é ainda muito cara?

David Sedlak – O que torna cara a dessalinização é seu uso intensivo de energia, mas o preço dessa água caiu cerca de 50% nos últimos 20 anos, à medida que as empresas detentoras da tecnologia melhoraram seus equipamentos. De 2003 a 2009, após uma severa seca, as grandes cidades da Austrália, como Sydney, Melbourne e Perth, optaram por construir usinas de dessalinização.

Hoje, em Perth, metade da água potável consumida vem do mar. A situação é similar em Israel. A Espanha também está construindo usinas. Há 20 anos, só países muito ricos do Oriente Médio utilizavam a dessalinização.

EXAME – Quando comparado à dessalinização, o reúso é uma tecnologia segura?

David Sedlak – O reúso da água de esgoto custa metade do preço da dessalinização e é considerado muito seguro pelos cientistas e engenheiros da área da saúde. Existem projetos funcionando há 30 anos sem problemas. A água de reúso passa por múltiplas barreiras de tratamento, o que a torna provavelmente mais segura do que a tecnologia tradicional de tratamento de esgoto.

É preciso lembrar que a filtragem e a cloração foram inventadas para lidar com rios que estavam contaminados com esgoto. Aumentamos a quantidade de esgoto, mas também o estamos tratando com muito mais intensidade para obter água potável. A questão é fazer as pessoas aceitar essa ideia.

Essá é uma das razões que me levaram a escrever o livro. Nele, dou o exemplo de Houston, no Texas. Um dos reservatórios da cidade recebe metade de sua água de uma estação de tratamento de esgoto convencional de Dallas, e isso não gera nenhum problema para a população.

EXAME – Que soluções o senhor costuma propor para as cidades?

David Sedlak – Em um subúrbio americano, com baixa densidade de casas, é possível optar até por tecnologias de captação e armazenamento da água de chuva. Há outra tecnologia que está evoluindo rapidamente: os biorreatores de membrana, que permitem criar pequenas estações de tratamento para grupos de casas ou prédios. Mas isso não funcionaria em São Paulo.

EXAME – O que funcionaria numa cidade desse porte?

David Sedlak – Misturar a solução convencional de importar água de longe com um programa de conservação e reúso pode dar certo. Se São Paulo reutilizasse metade de sua água, a oferta aumentaria 50%, com a vantagem de que a água reciclada não é afetada por secas.

Outra boa notícia para a cidade é que há muito a melhorar quando as necessidades de conservação apenas começaram. As cidades da Califórnia tentam incrementar a eficiência de seus sistemas de água há 30 anos, e está cada vez mais difícil encontrar novos ganhos.

Meu conselho para São Paulo é pensar em soluções como trocar as tubulações e reduzir os vazamentos na distribuição. Isso custa uma fração da alternativa de construir um novo reservatório.

EXAME – Não é importante também conscientizar os consumidores para evitar o desperdício?

David Sedlak – Na Califórnia, costumava-se criar regras como proibir as pessoas de lavar o carro ou irrigar os gramados. Isso fazia com que as concessionárias de água tivessem de agir como polícia, dirigindo pelas ruas para encontrar infratores. É mais simples ajustar a cobrança.

Nos últimos 20 anos, a maioria das concessionárias americanas mudou para um sistema em que a quantidade de água necessária para uma vida confortável tem um preço baixo. Quem quer consumir mais paga um preço maior. O sistema é chamado de cobrança por blocos, no qual cada bloco representa certa quantidade de água.

Cada bloco extra de consumo tem um preço mais alto. Mudar as regras de construção também ajuda. Antes, um vaso sanitário consumia 20 litros por descarga. Por lei, os novos devem consumir 5 litros. Mas isso funciona no longo prazo, não numa situação de emergência.

Fonte e imagem – Eduardo Pegurier, Exame de 22 de outubro de 2014

Lembra daquela frase “se poupar, não vai faltar”? Então, ninguém poupou, faltou e irá faltar muito mais. Ninguém poupou, todos terão que tomar água de cocô.

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