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A indústria alimentar aumenta a fila da saúde

Uma embalagem de Actimel, um dos “queridinhos” do momento para muitos profissionais de saúde, tem 11, 5 gramas de açúcar, incluída a lactose, o que equivale a 2,85 torrões. Foto: sinAzucar.org

Você já viu ou escutou falar do propagandista médico dos grandes laboratórios farmacêuticos? Saiba que as corporações de alimentos também têm um verdadeiro exército de propaganda, disfarçada ou não, na área da saúde

Você está lá, aguardando o atendimento do profissional de saúde com quem marcou consulta há tempos. Sala de espera. Quarenta, cinquenta, sessenta minutos de atraso. Impaciência. Várias olhadas no celular. Talvez, a leitura de um livro. Café. Qualquer coisa para fazer o tempo passar. O paciente que o antecedia na numeração da senha sai do consultório. Alívio: “É a minha vez”. Porém, o seu nome não é chamado. Tudo porque o médico acena ao portador de uma grande maleta cheia de caixas de remédios. É o propagandista da indústria farmacêutica, a pessoa que vai oferecer amostras grátis de medicamentos a quem já deveria ter lhe atendido bem antes. Respire fundo, vem mais chá de cadeira e não é improvável que o “doutor”, quando finalmente lhe abrir a porta, receite uma das marcas que acaba de receber como sugestão. Não faltam casos assim mundo afora. O que poucos de nós sabemos é que a indústria da alimentação adota prática semelhante. “À medida que os laboratórios farmacêuticos visitam os consultórios médicos para apresentar remédios, a indústria alimentar tem também uma agenda de apresentação de produtos”, ressalta o espanhol Juan Revenga, consultor em nutrição, que coloca a Danone como destaque entre as corporações que assim agem. “Essa empresa tem visitas no portfólio de atividades e isso está acontecendo até na saúde pública da Espanha”, afirma.

Revenga é professor da Universidade de San Jorge, na província de Saragoça, blogueiro, e autor dos livros Con las manos en la mesa (Com as mãos sobre a mesa, ainda sem edição em português) e Adelgázame, miénteme (Emagreça-me, minta-me, também sem edição em português), no qual relatou casos de médicos que recomendam o uso de certos produtos lácteos fermentados, como o Actimel, que leva um “fermento específico, exclusivo da Danone” e que serviria para regular a flora intestinal, além de “melhorar a imunidade a doenças”. Segundo ele, as recomendações não são embasadas cientificamente na maioria das vezes e a motivação não é a saúde do paciente, mas a manutenção das relações nebulosas entre  profissionais e grandes corporações de alimentos.

“Esses tipos de práticas são desagradáveis para mim e fazem parte de todas as sociedades médicas e científicas que não declaram conflito de interesse”, diz o nutricionista. Ele acredita que as megaempresas do setor buscam se apresentar como saudáveis para obter o endosso de médicos e sociedades de saúde. Em troca, além de amostras de remédios, as transnacionais oferecem viagens, patrocínios a eventos científicos e financiamento de pesquisas.

Não são poucos os casos em território espanhol de congressos ou fóruns nutricionais patrocinados por grandes marcas de alimentos. Um dos mais emblemáticos dos últimos tempos ocorreu no 36º C0ngresso da Sociedad Española de Medicina Familiar y Comunitaria (Semfyc), realizado na cidade de Corunha, em maio de 2016. Nele, um dos destaques foi o “IV Fórum de Educação em Saúde sobre Nutrição, Alimentação e Exercício Físico em Atenção Primária”, patrocinado por empresas como Danone e Herbalife Nutrition.

Médico de família em Madri e ex-vice-presidente da Sociedad Madrileña de Medicina de Familia y Comunitaria (Somamfyc), Vicente Baos concorda com muitos aspectos apresentados por Revenga. “Esses patrocínios são uma publicidade secreta, que as marcas patrocinadoras usam para apresentar opiniões a toda a comunidade profissional. São meras plataformas de propaganda. Não há nada para discutir cientificamente com uma empresa de salsicha, por exemplo”, argumenta.

Enquanto Baos e Revenga denunciam os conflitos de interesses existentes – mas não declarados – quando as entidades aceitam dinheiro das corporações e se comprometem a endossar determinados produtos financiadas por marcas de alimentos, há quem vá na contramão dessa linha crítica. Carmen Gómez Candela, médica com 25 anos de atuação como chefe da Unidade de Nutrição e Dietética Clínica do Hospital Universitário de La Paz, em Madri, justifica o apoio da indústria. “O fato é que as convenções científicas não são organizadas por empresas de alimentos; eles só contribuem com o capital para que possam ser realizadas, como acontece com as empresas farmacêuticas. Não há diferença em termos de conceito “, assegura.

A médica afirma que esse tipo de “parceria” permitiu que conhecesse de perto a evolução da indústria e serviu para esclarecê-la de que o açúcar pode ser defendido cientificamente, “na medida apropriada”. Também membro do comitê científico do Instituto de Estudos de Açúcar e Beterraba da Espanha, Carmen enfatiza: “Em quantidades moderadas, o açúcar faz parte de uma dieta saudável. Não pode ser demonizado.”

Ela deixa claro não apreciar “mensagens alarmistas” que “são lançadas por nutricionistas recém-chegados que adotam posições desse estilo”. Carmen Gómez refere-se aos profissionais que criticam a entrada da indústria alimentar no financiamento de congressos científicos, como já acontecia com a indústria farmacêutica. “Está muito na moda demonizar a comida. Todo mundo tem algo bom ou algo negativo. A chave é consumir em uma proporção correta”, destaca, claramente falando em favor da tese do balanço energético, que permite “comer de tudo na medida certa” desde que as calorias absorvidas sejam “queimadas” com o gasto calórico (atividade física) e é objeto de muitos debates, inclusive considerada “ultrapassada” e até um“mito de marketing” por pesquisadores que a veem apenas como uma maneira de a indústria alimentar, com o auxílio de alguns grupos científicos patrocinados, culpar exclusivamente o cidadão pela obesidade.

Os argumentos de Carmen não convencem Juan Revenga. Para ele, é evidente, o comprometimento de associações e profissionais de saúde com a indústria, que “aplica o dinheiro” para que pessoas criteriosamente escolhidas estejam presentes para discutir os produtos, que trazem retorno financeiro ao “investimento”, e não à saúde.

Uma prática que, na avaliação de Vicente Baos, se espalha porque as transnacionais farmacêuticas já não investem tanto dinheiro nos evento, o que motiva a procura de outros patrocinadores que tenham interesses comerciais na área da saúde. “Em outras palavras, misturar nutrição e saúde, para essas empresas, é uma pechincha”, ressalta.

Questionado sobre a viabilidade de modelos para a realização eventos de sociedades científicas livres de patrocínios da indústria, Baos não vacila. “Sim, existem. O pagamento de taxas proporcional aos rendimentos de cada inscrito e proporcional aos objetivos. Isso é educação fundamentalmente continuada. Não precisa ser cara (a inscrição) ou fazer megaeventos com milhares de pessoas, grandes mesas de café da manhã, almoço, jantar de gala, etc. Esse modelo está desatualizado. Com uma taxa razoável, você poderia fazer mais webinários , mais mini-eventos, mais reuniões locais e menos festas com decorações, danças e bandas”, conclui.

Para olhar com atenção

Fotos de objetos inanimados chamam a atenção nas redes sociais espanholas, porque a mensagem é clara. O sinAzucar.org, criado e liderado pelo fotógrafo Antonio Rodrigues Estrada, formado também em Nutrição Esportiva, busca revelar o “açúcar oculto” nos alimentos ultraprocessados. A escolha dos itens registrados pelas câmeras é fundamentada por um conselho de profissionais de saúde. Somente depois disso é que os produtos são fotografados, juntamente com a quantidade de açúcar contida em camadas, exibida na forma de torrões. “Usamos a mesma linguagem visual que a indústria usa para vender os produtos. Fotografia limpa, iluminação cuidadosa, retoque atraente, impacto visual, etc”, explica Estrada.

O resultado disso, além do site, é a grande participação em eventos sobre nutrição e principalmente a mobilização que o sinAzucar tem conseguido, tanto física – em encontros, debates e palestras – como virtualmente. Acompanhando a considerável audiência do site vêm os 214 mil seguidores no Facebook e os 131 mil no Instagram.

Em 28 de dezembro passado, a iniciativa divulgou uma tabela que inclui centenas de entidades de saúde e nutrição da Espanha que receberam apoio financeiro da Coca-Cola entre 2010 e 2017, num total de 14 milhões de euros repassados pela transnacional às organizações. 

As fotos do sinAzucar estão disponíveis para serem utilizadas e divulgadas desde que recebam os créditos e não sejam alteradas. Para fins comerciais, Antonio Estrada pede que haja contato prévio.

Fonte – Moriti Neto, O Joio e o Trigo de 22 de janeiro de 2018

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