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A terra inabitável

Imagem: pbs.org

O twitter de David Wallace-Wells nunca mais foi o mesmo depois de 09 de julho de 2017. Nesse dia, na New York Magazine, onde é editor-assistente e articulista, ele publicou um artigo desconcertante a respeito das mudanças climáticas em curso no mundo contemporâneo. Além do titulo assustador, A Terra Inabitável, digno dos clássicos filmes do gênero catástrofe, no artigo Wallace-Wells fazia o apanhado visionário distópico mais aterrador sobre as condições climáticas e ambientais do planeta desde que o ex-vice-presidente Al Gore lançou em 2006 o seu documentário Uma verdade inconveniente.

Desde então, o jornalista se tornou um dos grandes protagonistas da retomada das discussões em torno dos impactos imediatos que cercam a questão ambiental, absorvendo tanto o pânico da população quanto críticas severas de setores que tentam minorar sua advertência e converter seu livro apenas numa indigesta presença entre os bests-sellers de cabeceira lançados no início deste século. A estratégia de esfumaçamento seria mais eficiente se Wallace-Wells estivesse mal informado, usando de má-fé ou escrevesse mal. Nada disso acontece. Seu livro consegue ser um trabalho de reportagem de primeira linha e obra de não ficção que não se consegue largar desde a primeira frase.

“É pior, muito pior do que você imagina”, ele adverte a seus leitores para que deitem fora de imediato suas ilusões quanto aos efeitos perniciosos e devastadores das mudanças climáticas não serem tão sérios assim. Neste ponto do livro, em sua primeira frase, talvez as pessoas mais amedrontadas já desistam de encarar a série de evidências que ele vai descortinar num livro que o premiado jornalista Andrew Solomon classificou como “um meteoro”. Não fosse uma metáfora do desastre que possivelmente levou à extinção no passado remoto do planeta os grandes répteis e as primeiras formas de vida, talvez se pudesse dizer que seu livro tem a pretensão de evitar que efeito semelhante àquele possa ocorrer novamente, mas agora por obra exclusiva dos seres humanos e suas opções de produação e sobrevivência.

Cerca de dois anos após a publicação do artigo, Wallace-Wells o expandiu e aprimorou até transformá-lo no livro que a Companhia das Letras está lançando agora no Brasil. Acrescido do subtítulo sugestivo “uma história do futuro”, ele inicialmente parece seguir a linha de outros autores que têm se dedicado a perscrutar o futuro iminente. Ocorre que, diferentemente de historiadores como o israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e 21 lições para o século XXI, Wallace-Wells especula calcado na realidade presente e demonstra com clareza científica suas teses para lá de desconfortáveis. Em seu livro não há, portanto, suposições, mas constatações documentadas. É o tipo de exigência que todo jornalista científico, aliás, deveria fazer antes de provocar estardalhaço ou, da mesma forma, quando visa amortecer narrativamente a realidade. As razões de sua preocupação, se não fossem comuns ao interesse de sobrevivência da humanidade, poderiam ser descartadas solenemente. Seria o mesmo que legar às gerações futuras (não as remotíssimas, mas as que já estão aí) mais do mesmo descaso ambiental que nos trouxe ao colapso da vida marinha, ao esgotamento da camada de proteção à radiação ionizante, ao comprometimento da potabilidade dos mananciais de água e até mesmo das condições atmosféricas.

Nesse desdobrar de capítulos que não permite descanso, consolo ou desculpas, Wallace-Wells desbarata as camadas de coragem que qualquer pessoa minimamente consciente consegue ter quanto à realidade das condições ambientais do planeta. Este efeito é evidentemente por ele pretendido ao dar forma e conteúdo ao seu livro, mas consegue ser ainda mais eficaz pela capacidade de não aliviar nem por um instante os temores mais singelos em relação ao breve futuro ou, ainda mais grave, ao próprio tempo presente. Explica-se sua estratégia argumentativa: a todo o tempo Wallace-Wells lembra que a capacidade adaptativa dos seres humanos é muito grande e, por essa razão, a margem de tolerabilidade com condições degradadas vem ampliando-se na mesma proporção em que se deterioram as condições de vida do planeta decorrentes da atividade econômica e da imprudência humana.

Uma das mais contundentes críticas que A terra inabitável vem recebendo diz respeito justamente a um suposto enfrentamento das condições de produção capitalistas. Não é para tanto, pois Wallace-Wells guarda algumas de suas apostas em medidas de contenção e, principalmente, reorganização produtiva. Apesar de que ele não deixe de apontar soluções políticas e medidas de enfrentamento para situações críticas, é natural que seu livro venha a conflitar com projetos políticos calcados no extrativismo, na economia baseada em alto consumo e taxas de emissão de carbono e numa industrialização inconsequente. Em sua defesa, Wallace-Wells tem dito que privilegiou o enfoque na problemática sem deixar de lado o trabalho já existente em prol da sustentabilidade. Apenas este aspecto não foi mais explorado em seu livro, segundo ele, porque os investimentos irresponsáveis têm sido cada vez mais agressivos e atingido sobremaneira os países menos comprometidos em educar a sociedade para o desafio de iminentes – ou já presentes – pequenos colapsos que, se não freados, conduzirão o século 21 a um momento verdadeiramente dramático na história da humanidade.

Ainda que a pecha de alarmismo seja de difícil remoção, é interessante lembrar que o livro de Wallace-Wells foi publicado nos EUA (segundo suas palavras, o país mais negacionista do planeta) poucos meses após a divulgação do relatório especial do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas de 2018 (IPCC). Taxado por ambientalistas mais radicais como um relatório conservador, pela primeira vez o tom emitido pelas Nações Unidas valeu-se de termos como, por exemplo, “catástrofe”. Isso ocorreria, segundo os levantamentos globais, caso não se obtenha a limitação de aumento de temperatura global em torno de 1,5 graus Celsius, a fim de que se preservem condições mínimas para a atividade agrícola e integridade da saúde humana. Isso é menos que o limite convencionado em 2 graus e Wallace-Wells prevê que sem uma transição rápida nos modelos de transporte e consumo de combustíveis fósseis, em 2050 provavelmente já se terá alcançado um incremento de 3 graus centígrados na temperatura do planeta.

2050, aliás, é uma data que os autores dedicados a pensar o futuro da humanidade costumam valer-se para traçar um limite. Enquanto Wallace-Wells aponta que será o ano em que haverá a mesma proporção de água e plástico nos oceanos, Yuval Harari diz, por exemplo, que a data coincidirá com estágio no qual o desenvolvimento de inteligência artificial terá superado a capacidade de gestão humana e passará a depender cada vez mais de si própria. Mesmo que as questões ambientais muitas vezes se confundam a séries ou filmes distópicos, é difícil de acreditar que por um passe de mágica haverá uma tomada de consciência global e mudanças efetivas no encaminhamento de soluções para os seres humanos que viverão ou atravessarão este século para o próximo. O desafio, segundo o autor de A terra inabitável, não poderia ser mais tremendo. E como os advogados das soluções estritamente tecnológicas não têm obtido melhores indicadores ou empregado recursos suficientes em prol de sanar os problemas já presentes, o livro de Wallace-Wells cumpre muito adequadamente a função de alertar a sociedade global quanto à gravidade da situação ambiental. Melhor seria se não houvesse razão para alarme, mas, havendo, não é nada mau que seja de forma tão consistente e arrebatadora quanto ele faz.

Lucio Carvalho, Escritor e crítico literário. Autor de A Aposta (Movimento, 2015) e Inclusão em Pauta (Valentine, 2015), e do blogue Em Meia Palavra. Escreve ficção, poesia, crítica literária e artigos jornalísticos para diversas publicações.

Fonte – EcoDebate de 25 de junho de 2019

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