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Brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar no futuro, diz estudo climático

Phillippe Watanabe – Folha de São Paulo

Uma criança nascida hoje no Brasil provavelmente terá dificuldade para respirar durante seu crescimento e sua vida. Também enfrentará mosquitos transmissores de doenças, como a dengue, e eventos extremos, como queimadas, secas e inundações, em maiores quantidades.

Esses são alguns dos problemas de saúde associados às mudanças climáticas apresentados na nova versão do relatório Lancet Countdown: Tracking Progress on Health and Climate Change (em tradução livre, “Acompanhando os Progressos em Saúde e Mudanças Climáticas”), lançado na noite desta quarta-feira (13/11/2019).

Segundo o documento, a vida de todas as crianças nascidas a partir de agora será profundamente afetada pelas mudanças climáticas.

Esse tipo de poluição está associado a peso baixo em recém-nascidos, menor função respiratória em crianças e maiores taxas de hospitalizações.

Só em 2016, estima-se que a poluição do ar levou a 24 mil mortes prematuras no Brasil.

Vista de São Paulo do Pico de Jaraguá, onde a visibilidade é prejudicada por conta da neblina e poluição – Foto: Bruno Santos/ Folhapress

Para se ter ideia do tamanho do problema, em uma hora de exposição ao trânsito de São Paulo, por exemplo, a população “fuma” cerca de cinco cigarros, como apontam as pesquisas feitas pela equipe de Paulo Saldiva, diretor do IEA (Instituto de Estudos Avançados), na USP, e um dos coautores do relatório Lancet.

Para piorar, o monitoramento da poluição é deficitário no país. Levantamento deste ano da ONG Instituto Saúde e Sustentabilidade mostrou que só seis estados e o Distrito Federal fazem o monitoramento de poluição e divulgação dos resultados para a população. Mais de 90% das estações de monitoramento se concentram no Sudeste.

Outra preocupação quanto ao Brasil é o crescimento do uso de carvão. O documento mostra que o uso desse tipo de fonte de energia no país triplicou nos últimos 40 anos. Em contrapartida, é pequena a participação desse tipo de termelétrica na matriz energética nacional, com participação predominante de fontes renováveis, como hidrelétricas.

O futuro também será marcado por um aumento nas doenças transmitidas por mosquitos, segundo o relatório.

A dengue, por exemplo, sofre forte influência de chuvas, temperatura —elementos relacionados às mudanças climáticas— e urbanização. Desde 1950, a capacidade de transmissão de dengue aumentou em 5% para o Aedes aegypti (que também transmite febre amarela, febre chikungunya e o vírus da zika) e em 11% para o Aedes albopictus.

Mundialmente, 9 dos 10 anos mais propícios para a transmissão da dengue ocorreram do ano 2000 para cá, e atualmente metade da população mundial está em risco.

Isso quer dizer que é mais fácil pegar dengue hoje, doença transmitida pelo mosquito que se espalha mais rapidamente pelo mundo. Em 2016, o Brasil teve 1,5 milhão de casos de dengue, três vezes mais do que em 2014. Segundo o documento, o custo da infecção para o SUS entre 2012 e 2013 foi de cerca de US$ 164 milhões (R$ 770 milhões). Ao mesmo tempo, o peso socioeconômico da dengue chegou a US$ 468 milhões (cerca de R$ 1,9 bilhão).

Não é somente a dengue que preocupa os autores do estudo. Desde os anos 1980, dobrou o número de dias mais propícios para a contaminação por vibrio, um dos microrganismos responsáveis por casos casos de diarreia, que podem ter impactos sérios em crianças.

Também não faltarão eventos climáticos extremos. No Brasil, os incêndios florestais afetaram 1,6 milhão de pessoas desde 2001/2004. Até agosto, o Brasil teve seu maior número de queimadas desde 2010.

Uma das recomendações do relatório do Lancet, inclusive, diz respeito às florestas brasileiras. O documento orienta que deve se reafirmar o compromisso com o desmatamento ilegal zero até 2030, aliado a reflorestamento e redução de queimadas.

As cidades brasileiras, com suas variabilidades climáticas extremas, servem como um grande e trágico laboratório para entender o papel das mudanças climáticas na saúde da população, diz o médico e pesquisador Paulo Saldiva.

Ele cita o exemplo de São Paulo. Em determinada fatia dos dias mais quentes e mais frios, a mortalidade aumenta em 50%, com mortes relacionadas principalmente a AVCs (acidente vascular cerebral), pneumonias e infartos.

“A cidade tem uma zona de temperatura onde nada acontece, que varia de mais ou menos 17°C até 25°C, 26°C, mas os desvios aumentam a mortalidade”, afirma Saldiva.

Há ainda as diferenças regionais, que também impactam nas formas de mortalidade. “Morre-se de calor na zona leste e de frio na zona sul”, diz o especialista do IEA.

Mayara Floss, uma das autoras do relatório Lancet e médica residente de medicina de família e comunidade Grupo Hospitalar Conceição, diz que o cenário negativo apontado pelos dados deve servir de alerta para a tomada de ação, como a manutenção e aceleração dos compromissos climáticos tratados no Acordo de Paris. “Nós estamos na janela [temporal] em que é possível agir”, diz Floss.

O relatório também indica que o Brasil deveria reforçar a vigilância da qualidade do ar, inclusive com sistemas de envio de mensagens para quem estiver em regiões nas quais a exposição à poluição pode apresentar risco, aconselhando, por exemplo, em quais períodos a pessoa pode sair de casa e em quais se exercitar, diz Floss.

Segundo a pesquisadora, para tentar mudar a situação, o cidadão pode atuar com pressão política.

Saldiva diz que colocar a saúde como um ponto central na discussão climática pode ajudar a combater a “ignorância organizada, fruto da própria ignorância e de interesses econômicos de grupos afetados por práticas sustentáveis”.

O especialista compara a situação com a indústria do cigarro. “Ela sabia perfeitamente que o produto dela fazia mal, mas nunca passou na cabeça dela parar. A autorregulação é impossível. O documento aperta uma tecla SAP para colocar ciência no assunto.”

Participaram do relatório a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e a Fiocruz.

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