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Crise do clima – Portugal – Tempestades de fogo mataram 115 portugueses em 2017

Casas queimadas em Almaça, região no centro de Portugal que foi atingida por incêndios florestais em junho de 2017 – Lalo de Almeida/Folhapress

CERDEIRAO – agricultor António Marques da Costa, 74, anda todos os dias por um caminho de terra batida até uma fonte próxima para recolher a água com que abastece seus animais. Em seu percurso, na aldeia de Cerdeira, no centro de Portugal, contempla aquilo que foi destruído em 16 de outubro de 2017.

Naquela noite anormalmente quente de outono teve início o pior incêndio florestal do ano, um dos maiores da história em Portugal. “Já vi outros fogos, mas não como esse. Os outros arderam e apagaram-se bem.”

Foram 49 mortes, que se somaram às 66 vítimas de outro incêndio quatro meses antes. Muitos em Portugal associam os fogos à mudança climática causada pelo aquecimento global, mas, antes de tudo, criticam o despreparo das autoridades para lidar com a emergência.

O agricultor António Marques da Costa, 74, caminha com um garrafão de água em meio a oliveiras em Cerdeira, na região central de Portugal – Lalo de Almeida/Folhapress

À beira da estradinha, uma oliveira centenária consumida pelas chamas ainda carrega dezenas de azeitonas. Os frutos, que já estavam próximos da colheita, pendem murchos dos galhos. A paisagem se repete até onde os olhos alcançam.

Marques da Costa presenciou algo que se torna mais e mais comum em Portugal e noutras partes do mundo, como a Califórnia, nos Estados Unidos. São as chamadas tempestades de fogo, incêndios florestais poderosos que realimentam as chamas com as próprias correntes de ar que criam, desde que hajam as condições meteorológicas adequadas e material combustível abundante.

“O pior foi ver a arder tudo o que nós criamos aqui. Andávamos aí para trás e para frente para salvar uma casa em que eu fui criado e que eu dei aos filhos.” Além de mais de uma centena de oliveiras, o agricultor perdeu plantações, uma área com castanheiras e uma casa usada para guardar material de trabalho. Diz que não tem esperança de recuperar o que foi perdido no incêndio.

“O que tiver, guarda-se. As casas eu já não recupero. Dinheiro [para reconstruir a casa e as plantações] eu não tenho. Minha aposentadoria é só de 300 euros, não dá para nada.”

Vegetação e casas queimadas em área rural de Oliveira do Hospital, que foi atingida por incêndios florestais em 2017 – Lalo de Almeida/Folhapress

Embora os incêndios florestais sejam bastante comuns no verão de Portugal, a extensão e a gravidade dos danos em 2017 foram inéditas: 115 mortos e ao menos 5.000 km² atingidos, mais que o triplo da superfície do município de São Paulo. Causou surpresa que os dois principais incêndios tenham acontecido no outono e na primavera.

A tragédia anterior se dera em 17 de junho, um sábado de sol a quatro dias do início do verão. Deixou 66 mortos, incluindo nove crianças e adolescentes, e mais de 250 feridos na região de Pedrógão Grande e Góis, no centro do país.

No dia 16 de outubro, outro incêndio florestal, desta vez na região de Oliveira do Hospital, Castelo Branco e adjacências, também na área central do país, matou 49 pessoas e deixou mais de 70 feridos.

Os prejuízos materiais foram de cerca de 1 bilhão de euros (cerca de R$ 4 bilhões), segundo o secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão, Nelson de Souza. E tudo indica que esse tipo de catástrofe pode se tornar mais frequente.

Compare o passado recente de Espanha e Portugal, países limítrofes com clima semelhante e resultados distintos no que respeita a incêndios: enquanto na Espanha, a partir de meados da década de 1980, houve redução considerável da área queimada, em Portugal quase não houve variação.

Ainda não é possível afirmar de forma taxativa que o aumento dos incêndios florestais em Portugal seja resultado do aquecimento global. Mas há indícios consistentes disso, aponta o climatologista Pedro Miranda, diretor do Instituto Dom Luiz –instituição dedicada à pesquisa de meteorologia, clima, geofísica e ciências da Terra– da Universidade de Lisboa.

“Para haver fogo, é preciso ter floresta. E esta floresta deve ter condições favoráveis para arder. Isto é, tem de estar seca e em temperaturas elevadas.”

Em Portugal, a diminuição das chuvas, com períodos prolongados de seca em vários anos, é uma das principais manifestações das alterações climáticas. E viria daí o maior fator a contribuir para a ocorrência de incêndios.

“Nesses últimos anos, temos tido várias secas: em 2003, 2005, 2017. E elas vêm coincidir com períodos de mais fogos”, afirma Miranda.

O climatologista afirma que já existem estudos reforçando a correlação entre as mudanças climáticas e a ocorrência de incêndios. Para confirmá-la de vez, entretanto, seria preciso um volume maior de dados.

Os números do IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), órgão vinculado ao governo, vão nessa direção. O ano de 2017 foi mesmo extremamente quente e seco: a temperatura média do ar ficou cerca de 1,1ºC acima do normal, fazendo dele o segundo ano mais quente desde 1931, atrás apenas de 1997.

Proprietária de uma empresa de obras e serviços ligados à construção civil, a empresária Verónica Fonseca diz viver na pele aquilo que os cientistas descrevem em números. As instalações de sua fábrica foram destruídas no grande incêndio de outubro, que extrapolou a floresta e chegou à zona industrial de Oliveira do Hospital. Mais de 70 empresas queimaram na localidade.

“Aqui eu noto muito: cada vez tem chovido menos”, relata. “Nesta região não é nada normal, nós passávamos semanas e semanas com chuva, e agora não tem acontecido isso. Eu acho que o tempo tem andado um bocadinho para frente. Não sei se há aqui algumas alterações climatéricas, mas todos os anos se prolonga mais o tempo de calor e de seca”, conta a empresária, nascida e criada na região.

Ela fita com tristeza o amontoado de ferro retorcido no qual se transformou a fábrica fundada por seu pai há 40 anos. Uma dezena de funcionários escava os escombros e as cinzas em busca de materiais aproveitáveis. Caminhonetes de serviço são reconhecidas apenas por seus esqueletos.

“Era como se o fogo voasse”, diz, relembrando os ventos fortes que ajudaram a propagar as chamas pelo ar seco. “Geralmente os fogos florestais aconteciam, mas nunca tiveram uma dimensão completamente catastrófica”, conta.

Ela estima que seu prejuízo seja de pelo menos 1 milhão de euros (aproximadamente R$ 4 milhões). Reclama de pouca atenção do Estado português e mesmo da comunidade internacional.

“Quando houve a situação em Pedrógão [o incêndio de junho que matou 66 pessoas], houve muita divulgação. Aqui foi bem menos”, compara. “Talvez porque lá houve mais perdas humanas.”

Empresa de obras e serviços ligados à construção civil que foi destruída por incêndio florestal em 2017; abaixo, a empresária e proprietária do local Verónica Fonseca observa interior do estabelecimento – Lalo de Almeida/Folhapress

Os incêndios de 17 de junho ficaram marcados sobretudo pelas imagens do trecho de rodovia que concentrou a maioria das vítimas fatais das chamas. No dia do incêndio, havia muitos visitantes na região de Pedrógão Grande, conhecida pelo turismo em suas praias fluviais. É um destino popular para quem viaja de Évora a Coimbra, duas das cidades históricas mais visitadas de Portugal.

Quase seis meses após a tragédia, quando a reportagem da Folhaesteve no local, as árvores queimadas e as placas de trânsito destruídas testemunhavam de modo sutil o que aconteceu na via nacional 236, que passou a ser conhecida como estrada da morte.

A rodovia, assim como outras do interior de Portugal, é estreita e serpenteia por entre uma vegetação densa de pinheiros e eucaliptos, duas espécies com alto poder combustível.

Segundo o relatório da comissão independente que investiga o incêndio, o local do sinistro tem ainda uma inclinação que aumenta em 67% a velocidade de propagação das chamas em comparação ao terreno plano. Quanto maior é a inclinação, maior é o efeito das colunas de convecção que aquecem a vegetação, o que ajuda a espalhar as chamas no sentido ascendente.

As vítimas tentavam usar a via como rota de fuga do incêndio, mas acabaram morrendo ao ficarem encurraladas em um trecho de menos de 500 metros que foi engolido pelo fogo.

Um ponto bastante criticado foi a falta de resposta das autoridades, especialmente o número insuficiente de bombeiros, que em Portugal são em sua maior parte voluntários (os profissionais normalmente se restringem às cidades maiores).

A quantidade de bombeiros vem caindo em Portugal, segundo dados do INE (Instituto Nacional de Estatística). Em 2015, o efetivo era de pouco menos de 29 mil bombeiros. Dez anos atrás, eram 42 mil. Um dos principais motivos é demográfico: há cada vez menos pessoas –especialmente jovens– vivendo no interior do país.

Os eventos derrubaram dois nomes da cúpula política: a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, e o chefe da Proteção Civil, Joaquim Leitão, criticados pela atuação no primeiro grande incêndio e pelo fato de não terem evitado o segundo, quatro meses depois.

Flores colocadas na beira de estrada próxima a Pedrógão Grande em homenagem às vítimas dos incêndios florestais que atingiram a região central de Portugal em 2017 – Lalo de Almeida/Folhapress

Não faltam relatos de tentativas, em vão, de conseguir auxílio. “Eu tentei pedir ajuda, mas nós não tínhamos comunicações em lado nenhum. As únicas autoridades que a gente viu foi muita polícia, a tentar coordenar, mas a certa altura até eles próprios já estavam preocupados com as próprias vidas deles. É mesmo assim: cada um estava por si”, conta a empresária Verónica Fonseca, sobre a noite do incêndio em sua fábrica.

Sócio da fábrica Azeites do Cobral, o empresário Luís Miguel Brito também se viu sem apoio para combater as chamas naquela noite. Proprietário de caminhões, tratores e alguns equipamentos que dispersam água, ele precisou escolher entre salvar sua plantação de azeitonas ou as casas de seus vizinhos. Optou pelos vizinhos.

“Eu tenho 30 hectares de olival, e ele foi destruído na totalidade. Tanto o olival tradicional, quanto os antigos, centenários. Perdeu-se para sempre a qualidade do azeite produzido pelas oliveiras centenárias.”

Ele aposta em uma redução significativa no volume de azeite produzido em toda a região. O movimento fraco do lagar –local de processamento das azeitonas para obter azeite– em pleno período de colheita indica que os agricultores tiveram perdas significativas.

Morador caminha em frente à casa destruída por incêndio florestal em Cerdeira, centro de Portugal – Lalo de Almeida/Folhapress

A região de Oliveira do Hospital, onde fica a Azeites do Cobral, passou anos sem grandes sobressaltos por causa de incêndios. Um feito atribuído, entre outros fatores, ao bom manejo das florestas, como a limpeza constante das áreas de mata, diminuindo o material seco que alimenta as chamas.

A realidade não se repete no restante do país, segundo especialistas, que classificaram as regras de ordenamento florestal de Portugal como insuficientes. Áreas com espécies nativas, como carvalhos e castanheiras, vêm sendo replantadas com pinheiros e eucaliptos, que oferecem retorno financeiro mais rápido, mas são mais propensas ao fogo por formarem bosques homogêneos de árvores resinosas que acumulam biomassa seca sobre o solo.

De acordo com o Inventário Florestal Nacional, houve um aumento de 13% na quantidade de eucaliptos em Portugal entre 1995 e 2010. Hoje a árvore originária da Austrália é dominante nas florestas portuguesas.

“Os incêndios dependem muito da ocupação dos terrenos e da maneira como ela é gerida”, diz o climatologista Pedro Miranda. “Se a nossa floresta não tivesse uma grande quantidade de árvores muito fáceis de entrar em combustão, ela seria mais resistente.”

No relatório do estado do ambiente de Portugal em 2017, a Agência Portuguesa do Ambiente indica que os eventos ambientais extremos que marcaram o ano devem ser encarados como um prenúncio do que está por vir.

“A seca grave, as temperaturas acima da média, a intensificação de fenômenos meteorológicos extremos que vivemos neste ano serão, de acordo com grande parte da comunidade científica, a nova realidade”, alertam.

Coordenador do Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas da Região de Coimbra, a maior do país, com 19 municípios, João Carlos Mano Castro Loureiro, professor da Universidade de Coimbra, destaca que algumas características da floresta portuguesa, como a concentração nas mãos de pequenos proprietários privados, tornam necessária a criação de políticas públicas de estímulo à preservação de espécies autóctones.

Acima, oliveiras destruídas por incêndios florestais em Travanca dos Lagos; abaixo, o empresário Luís Brito que precisou escolher entre salvar sua plantação de azeitonas ou as casas de seus vizinhos – Lalo de Almeida/Folhapress

Suas projeções indicam que a própria viabilidade do eucalipto pode ficar comprometida diante do aumento das temperaturas e das mudanças que vêm com ele. “Pode haver oportunidade para espécies nossas, autóctones, muito mais bem-adaptadas a este clima.”

O governo prometeu ainda para 2018 apresentar alterações na legislação florestal, inclusive na regulamentação do eucalipto e de outras espécies estrangeiras.

Para os pesquisadores, é preciso também insistir na conscientização das populações para a nova realidade florestal no contexto da mudança climática. Em Portugal, assim como no Brasil, existe uma cultura de fazer queimadas para “limpar” o terreno.

“As pessoas têm isso como sua rotina anual, um bocadinho insensíveis às condições [meteorológicas] daquele momento”, avalia o pesquisador. “Infelizmente, na tragédia que houve em outubro último, [foi] uma das principais razões para as pessoas terem feito queimadas.”

O relatório interdisciplinar contou ainda com técnicos no terreno, que fizeram perguntas à população sobre as alterações climáticas. A socióloga Fátima Alves, pesquisadora da Universidade de Coimbra, destaca que são poucos os que não acreditam no aquecimento global e em suas consequências.

“De um modo geral, já ouviram falar das alterações climáticas, conseguem identificar onde é que elas se manifestam em seu dia a dia”, avalia. Mas isso não basta: “As pessoas sabem o que se passa, mas não estão, digamos, igualmente comprometidas com a mudança do seu próprio comportamento”.

Texto: Giuliana Miranda e Lalo de Almeida / Imagens: Lalo de Almeida / Infografia: Simon Ducroquet / Edição de vídeo: Victor Parolin / Edição de fotografia: Daigo Oliva / Edição e revisão de texto: Marcelo Leite, Mariana Versolato e Renan Marra / Tratamento de fotografia: Edson Sales / Design e desenvolvimento: Angelo Dias, Pilker, Rubens Alencar e Thiago Almeida / Coordenação de arte: Kleber Bonjoan, Thea Severino e Daigo Oliva / Coordenação geral: José Henrique Mariante e Roberto Dias / Idealização: Lalo de Almeida e Marcelo Leite

Fonte – Giuliana Miranda, Lalo de Almeida, O Estado de S. Paulo de 08 de maio de 2018

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