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Hotel Amazônia

Foto: Antonio Gaudério | Folha ImagemFoto: Antonio Gaudério | Folha Imagem

Partamos do óbvio: não podemos viver sem florestas. Tal é, desde 2014, o mote da FAO sobre a necessidade de conservarmos o que resta desses sustentáculos da vida no planeta[I]. Como estruturas comunitárias vivas, nas quais árvores e outras plantas, animais, fungos e micro-organismos reproduzem e interagem, as florestas preservam o solo, regulam a água, os ciclos de nutrientes, o equilíbrio das trocas de gases na atmosfera e a estabilidade climática. As florestas são “o lar de mais de 80% de todas as espécies de animais, plantas e insetos”<[II], incluindo a maior parte das espécies ameaçadas. Defendem-nos também das secas e inundações, garantem a segurança alimentar da nossa e de inúmeras outras espécies e, enfim, mitigam os impactos crescentes das mudanças climáticas. Entre 2001 e 2013, o desmatamento das florestas tropicais emitiu por ano 2,23 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente às emissões anuais totais da Rússia[III]. Um dos mais pacíficos consensos da história do saber é o axioma de que o futuro da biosfera (e, portanto, da humanidade) está ligado ao futuro das florestas.

Partamos novamente do óbvio: ao que tudo indica, as florestas não têm futuro. Essa afirmação pode parecer excessiva, mas decorre dos dados da FAO: ao final da última idade do gelo (11.700 anos AP), as florestas cobriam 60 milhões de km2. Em 2010, 85% dessa área não possuía mais florestas ou as possuía em estado degradado ou fragmentado[IV]. Entre 1950 e 2000, o desmatamento foi maior que em toda a história pregressa da civilização (desde a Revolução neolítica até 1950)[V]. A aceleração no século XXI é inequívoca. Thomas Crowther e coautores de 15 países calculam que mais de 15 bilhões de árvores são derrubadas por ano[VI]. E, segundo o Global Forest Watch, apenas “entre 2000 e 2012, o mundo removeu 2,3 milhões de km2 de cobertura florestal, o equivalente a perder 50 campos de futebol por minuto todos os dias”[VII]. Entre 2011 e 2014, verifica-se uma nova aceleração do desmatamento, com uma média anual de perda florestal de 210 mil km2.

A Mata Atlântica

No dia 27 de maio último, Dia da Mata Atlântica, constatamos uma nova aceleração da destruição de seus remanescentes. Segundo o Atlas da Mata Atlântica, realizado pela SOS Mata Atlântica em parceria com o INPE, em 12 meses (2015-2016) desmataram-se 291 km2, contra 184 km2 no mesmo período anterior, um aumento de quase 60%. Nunca perdemos tanto desde 2008. “A cada dois dias um Ibirapuera de Mata Atlântica desaparece”, calcula Vandré Fonseca[VIII]. De seus 1,3 milhão de km2 originais, restam hoje 112 mil km2 (8,5%) de mata com extensão contígua maior que 100 hectares. Nada no momento permite falar em reversão do processo de extinção desse que ainda é, apesar de tudo, um dos mais ricos biomas do planeta.

A destruição do Cerrado e o assalto final à Amazônia

O que ocorreu com a Mata Atlântica em cinco séculos está acontecendo com a floresta Amazônica e o Cerrado em decênios. Em quatro anos (agosto de 2013 a julho de 2016), as perdas por corte raso, apenas na Amazônia Legal, foram de 25 mil km2, uma área maior que Sergipe (21,9 mil km2). Somadas as perdas na Amazônia e no Cerrado, o Brasil perdeu 22,6 mil km2 de cobertura florestal tão somente em 2014![IX] Após os militares, os protagonistas da destruição são hoje o BNDESpar (que investiu na JBS, direta ou indiretamente, R$ 8,1 bilhões e é proprietário direto de 21,3% da empresa[X]), as madeireiras, os frigoríficos, o agronegócio e, sobretudo, a pecuária, tudo isso regado pelo sistema financeiro e fomentado pelas corporações de sementes, fertilizantes e agrotóxicos e pelos grandes traders internacionais. Desde que, em finais de 2012, essa coalizão impôs o novo Código Florestal, houve uma alta de quase 75% no desmatamento da Amazônia.

Foto: ReproduçãoFonte: Giuliana Miranda, “Novo Código Florestal contribuiu para aumento no desmatamento”. | Folha de São Paulo, 12/XII/2016

Os pecuaristas são responsáveis por 70% a 75% do desmatamento da Amazônia e, segundo a Forest Trends, por 90% de seu desmatamento ilegal[XI]. E também, ao que sugere o paralelismo dos gráficos abaixo, pelo aumento inaudito dos focos de incêndio da floresta no Estado da Amazônia (de ~ 40.000 em 2003 para ~240.000 em 2015)

Foto: ReproduçãoFonte: GISS (NASA) e Claudio Angelo, “Amazônia deve ter recorde de queimadas”, Observatório do Clima, 30/VI/2016

Após os incêndios, o pasto substitui a floresta e a pecuária avança. Em 1997, os pecuaristas abateram 14,9 milhões cabeças de gado. Em 2013, 34,4 milhões.

Reprodução

E como cerca de 80% da carne produzida no Brasil é consumida pelos próprios carnívoros brasileiros, é difícil ignorar a incômoda pergunta feita por João Meirelles, do Instituto Peabiru, num famoso texto de 2006: “Você já comeu a Amazônia hoje?”

O agronegócio e a mineração já destruíram 880 mil km2 da vegetação nativa do Cerrado (46% de sua área). Apenas cerca de 20% dele permanece intocado. “Entre 2002 e 2011, as taxas de desmatamento nesse bioma (1% ao ano) foram 2,5 vezes maior que na Amazônia. (…) Mantidas as tendências atuais, 31% a 34% da área do que resta da cobertura vegetal do Cerrado deve ser suprimida até 2050”[XII].

Assiste-se, ao mesmo tempo, ao assalto final à Amazônia. Um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco mostra que, desde 1981, 70% dos 48 processos de Redução, Desclassificação ou Reclassificação (RDR) de áreas protegidas ocorreram após 2008. No governo Temer, a guerra de desgaste à floresta e a seus povos, típica do governo Dilma, tornou-se uma Blitzkrieg, com ao menos sete medidas provisórias e projetos de lei destinados a liquidar suas últimas defesas[XIII]. “Imagine um hotel que tenha 100 quartos, mas que só possa comercializar 20 unidades. As outras 80 ele tem que manter fechadas”, protestou na COP22 Blairo Maggi, Ministro da Agricultura, queixando-se da reserva legal prevista pelo Código Florestal nas propriedades rurais da Amazônia[XIV]. Raramente a percepção que o capitalismo tem da natureza terá sido melhor formulada.

[I] FAO, We can’t live without forests, 10/XII/2014 <http://www.fao.org/zhc/detail-events/en/c/262862/>.

[II] Cf. UN, 2015: Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. “Goal 15: Sustainably manage forests, combat desertification, halt and reverse land degradation, halt biodiversity loss”.

[III] Cf. Daniel J. Zarin et al., “Can carbon emissions from tropical deforestation drop by 50% in 5 years?”. Global Change Biology, 9/II/2016.

[IV] FAO State of the World forests 2012.

[V] Cf. Michael Williams, Deforesting the Earth, 2000. Epílogo: “Almost as much forest was cleared in the past as has been cleared in the last 50 years”.

[VI] Cf. Thomas W. Crowther et al., “Mapping tree density at a global scale”. Nature, 525, 7568,  10/IX/2015, pp. 201-205.

[VII] Cf. Matthew C. Hansen et al., “High-Resolution Global Maps of 21st-Century Forest Cover Change”. Science, 342, 6160, 15/XI/2013, pp. 850-853.

[VIII] Cf. V. Fonseca, “A cada dois dias, um Ibirapuera de Mata Atlântica desaparece”. ((o)) eco, 29/V/2017.

[IX] Cf. Global Forest Watch – Brasil <http://www.globalforestwatch.org/country/BRA>.

[X]Cf. A. Vieira, M. Camarotto, L.H. Mendes e R. Rocha, “Investimentos do BNDES na JBS entram na mira da Polícia Federal”. Valor econômico, 12/V/2017.

[XI] “Agropecuária é responsável por 90% do desmatamento ilegal no Brasil”. Carta Capital, 16/IX/2014.

XII] Cf. Bernardo B.N. Strassburg et al., “Moment of truth for the Cerrado hotspot”. Nature Ecology & Evolution, 2017.

[XIII] Ei-las, segundo levantamento feito pelo Greenpeace: (1) Enfraquecimento da Lei Geral de Licenciamento ambiental (PL 3.729/2004); (2) Atentado aos direitos indígenas e à demarcação de Terras Indígenas (PEC 215/2000 e PEC 132/2015); (3) Redução das áreas protegidas e Unidades de Conservação (UCs) no Pará (MP 756/2016 e MP 758/2016); (4) Liberação de agrotóxicos (PL 6299/2002); (5) Fim do conceito de função social da terra (MP 759/2016); (6) Ataque a direitos trabalhistas no campo e redefinição do conceito de trabalho escravo (PL 6422/2016 e PLS 432/2013); (7) Flexibilização do Código de Mineração (PL 37/2011). Cf. “Resista: Sociedade Civil se une contra Temer e os ruralistas” (em rede).

[XIV]Cf. Reinaldo Canto, “Blairo Maggi, constrangimento na COP22”. Carta Capital, 21/XI/2016.

Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).

Fonte – Jornal da UNICAMP de 05 de junho de 2017

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