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Novas torres de energia no Paraná podem gerar danos sociais e ambientais irreversíveis

– Envolverde

As linhas devastariam mais de 600 hectares de algumas das últimas porções de Floresta com Araucária e Campos Naturais do Sul do Brasil e impactariam a vida de, aproximadamente, 30 comunidades tradicionais

A instalação de 1.069 torres de transmissão de energia elétrica que a multinacional francesa Engie quer instalar no Paraná, na região dos Campos Gerais, pode provocar resultados devastadores e irreversíveis. Corte de vegetação nativa, de araucárias centenárias, degradação de algumas das últimas parcelas de campos naturais nativos, perda de habitat natural, morte de animais, degradação do solo e perda de riquezas arqueológicas seriam algumas das consequências geradas pelo empreendimento. Sem falar nos riscos que a implantação das torres simboliza para os pequenos produtores rurais e para as comunidades tradicionais das mais de 27 cidades que receberiam as linhas de transmissão.

Essas linhas, que podem passar por mais de 500 quilômetros do território paranaense, devastariam mais de 600 hectares de áreas naturais protegidas, impactando a vida de, aproximadamente, 30 comunidades tradicionais do estado. A instalação dessas torres de transmissão elétrica alteraria para sempre a paisagem e o meio ambiente de diversas localidades, em especial da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana.

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As linhas, que podem ser implantadas pela multinacional Engie e fazem parte do projeto “Gralha Azul”, segundo detalhes do próprio projeto, passariam por mais de duas mil propriedades rurais. Ironicamente, a gralha azul é a espécie dispersora do pinhão, a semente da árvore Araucária. As últimas porções de Floresta com Araucária e Campos Naturais que ainda existem no Sul do Brasil estão na região dos Campos Gerais e agora sofrem, novamente, com os riscos dos prejuízos que podem ser impostos pelo empreendimento. Resta menos de 1% de Floresta com Araucária e Campos Naturais em bom estado de conservação em todo o Brasil. De tão valiosos do ponto de vista visual, turístico e de biodiversidade, os Campos Gerais já chegaram a ser definidos pelo naturalista francês, Saint Hilaire como “o paraíso na Terra”.

Um dos trechos de instalação das torres e linhas vai de Ponta Grossa, nos Campos Gerais, até Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba e passa, exatamente, em cima da APA da Escarpa Devoniana – uma unidade de conservação de uso sustentável rica em tesouros arqueológicos, em fauna e flora – e que é protegida por lei. Somente neste trecho está previsto, segundo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) realizado pela própria empresa, que 398 novas torres sejam instaladas. O custo do projeto está estimado em mais de R$ 2 bilhões, segundo R$ 1,4 bilhão com recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social).

No outro trecho do projeto Gralha Azul, que vai de Ivaiporã a Ponta Grossa, a Engie estima instalar outras 671 torres. Somando, seriam implantadas 1.069 novas torres, dispostas a cerca de 500 metros cada, que afetariam, por exemplo, toda a biodiversidade e o solo dessa região do estado.

As licenças ambientais do empreendimento foram emitidas pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP), atual Instituto Água e Terra (IAT), em outubro de 2019 e em fevereiro deste ano. Se esse empreendimento for adiante, resultará em um impacto ambiental irreversível e altamente danoso. O IAP, vale lembrar, foi rebatizado pela gestão de Ratinho Jr. e o atual secretário de Turismo e Desenvolvimento Sustentável, Marcio Nunes já esteve envolvido em diferentes denúncias envolvendo ameaças ao patrimônio natural no Estado.

Transparência zero

Uma análise encomendada pelo Observatório de Justiça e Conservação (OJC), feita por uma equipe técnica formada por nove pesquisadores e profissionais especialistas em estudos de impacto ambiental, revela os riscos desse projeto. O estudo, coordenado pelo professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Eduardo Vedor, que é doutor em Geografia, e também pelo geógrafo e mestre em Geografia Marcelo Ban Hung, avalia criteriosamente os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da instalação das linhas de transmissão.

A conclusão é de que o licenciamento do projeto apresenta diversos problemas em relação ao cumprimento da legislação vigente. Os Termos de Referência – que são os documentos que informam as diretrizes para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental – sequer constam no processo de licenciamento ambiental. Esses Termos são documentos públicos e que deveriam ser disponibilizados à sociedade pelo Instituto Água e Terra. De modo nada transparente, muitos documentos, que deveriam ser públicos, só foram obtidos por intermédio do Ministério Público.

Araucaria - Portal Embrapa

A análise aponta, ainda, que o EIA não apresenta mapas ou cartogramas, apesar de citar um “caderno de mapas”, mas que também não foi disponibilizado. Isso pode fazer com que as localidades impactadas pelo empreendimento sofram variações no decorrer das instalações das torres. Os estudos apenas citam a previsão de instalação das torres, sem apresentar mapas de onde elas serão localizadas. Também não são indicados os impactos que elas causariam nas localidades de instalação. Outro fator que chama a atenção é que o licenciamento, que é bastante complexo, foi obtido em um prazo recorde de seis meses, quando o normal, segundo os técnicos, é de que ele deveria ter levado, no mínimo, dois anos para ser conquistado.

A deficiência de representações cartográficas dificultou a análise dos impactos gerados pelo empreendimento, com destaque para a inexistência de mapas com o perímetro das propriedades rurais impactadas por ele, fato que torna impossível avaliar o real impacto sobre o seu potencial produtivo e sobre outros aspectos que envolvem as comunidades diretamente afetadas. “Este grave problema da ausência da localização das torres de transmissão oculta o real impacto do empreendimento, visto que os EIAs não avaliaram, em nenhum momento, o impacto das torres no diagnóstico ambiental do meio físico, biótico e socioeconômico”, ressalta a análise dos pesquisadores.

Constatou-se, ainda, que a região impactada possui significativa diversidade geográfica e biológica, altíssimo potencial espeleológico e áreas de bens tombados, como a própria Escarpa Devoniana.

Mata de Araucárias - Biomas - InfoEscola

Unidades de Conservação

O próprio EIA aponta que cerca de 655 hectares de Reserva Legal, Unidades de Conservação e Áreas de Preservação Permanente serão impactadas pelas instalações das linhas de transmissão da Engie nos dois trechos de implantação das torres. Ou seja: uma área equivalente a 655 campos de futebol gravemente comprometida.

Não há, no entanto, detalhamento das localidades que podem sofrer com a remoção da cobertura vegetal. O Estudo alega que o impacto será temporário e reversível. Mas, os pesquisadores que o analisaram confirmam que esse impacto é permanente, irreversível e de alta significância para o meio.

O empreendimento está próximo de algumas Unidades de Conservação, como a Reserva Biológica das Araucárias, em Teixeira Soares, e a APA da Escarpa Devoniana. Também fica perto da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Papagaio Velho. Os impactos sobre as unidades de conservação sequer foram abordados pela Engie.

O EIA da Engie também não contempla a necessidade de um criterioso mapeamento das nascentes dos rios e áreas alagáveis. Assim, o estudo não avalia a dinâmica das áreas úmidas, que possuem fauna e flora específicas. O ecossistema dessas regiões é extremamente frágil e dinâmico. A caracterização da cobertura vegetal não foi realizada pelo EIA de forma conjunta com a rede hidrográfica, corredores ecológicos, unidades de conservação e áreas com potencial para refúgio da fauna. O EIA também faz uma descrição do empreendimento em termos de localização, mas não especifica quais as estradas vicinais seriam utilizadas e abertas para acesso às mais de mil torres, acessos esses necessários tanto para instalação como para a manutenção das torres. Estima-se que cerca de 400 quilômetros de novos acessos serão necessários, mas os EIAs ignoram esses relevantes impactos. Também não está especificado em que pontos das estradas o empreendimento estabelecerá algum tipo de interferência. O mapa inserido no Estudo não apresenta essas informações.

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Mais falhas

Os pesquisadores verificaram, dessa forma, que os diagnósticos ambientais que constam no Estudo de Impactos Ambientais do empreendimento são “extremamente superficiais e não estabelecem relações entre os elementos do meio físico, bem como com o empreendimento em diversos pontos”.

“Os estudos apresentam predominantemente descrições gerais da região central do Estado do Paraná e não abordam as particularidades encontradas nas áreas de influência do empreendimento”, concluiu a equipe de pesquisadores. Os Estudos de Impacto Ambiental da Engie contemplam, portanto, um déficit marcante de informações exigidas a respeito da flora e da fauna. A abrangência das amostras no trabalho que eles fizeram, segundo os pesquisadores, é pouco representativa para a extensão das áreas em que as linhas serão instaladas.

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Riscos para o patrimônio histórico e arqueológico

O empreendimento, que pode atravessar todo o Segundo Planalto Paranaense, coloca em risco a preservação arqueológica e histórica do estado. O Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (GUPE), da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), realizou trabalhos de campo objetivando a prospecção espeleológica na área do empreendimento. O grupo identificou recentemente dez novas cavernas subterrâneas que possuem fauna e flora específicas.

O GUPE ressalta que a implementação das linhas de transmissão pode representar um alto risco às cavidades naturais existentes na região e que o empreendedor não considerou esse importante aspecto do patrimônio natural no Estudo de Impacto Ambiental.

Ao todo, já foram identificadas 31 novas cavidades naturais subterrâneas na área de influência direta das Linhas de Transmissão. Essas cavernas podem guardar tesouros arqueológicos e precisam ser preservadas e estudadas, segundo o grupo.

Outra atenção especial deve ser dada, conforme apontam os pesquisadores, à formação geológica da bacia do Rio do Rastro, que passa pela região, devido ao rico registro paleontológico que ela acumula. É considerada, inclusive, elevada a possibilidade de recuperação de material paleontológico durante a etapa de escavação das fundações para a implantação das torres, o que exigiria um cuidado especial. Essa fase da operação do empreendimento, contudo, não está especificada e, tampouco, detalhada no EIA.

O EIA não traz informações sobre a distância do empreendimento e os bens tombados, nem sobre o patrimônio arqueológico. O Estudo, por exemplo, não identifica a Igreja de São Josafat, em Prudentópolis, tombada pelo Patrimônio Histórico e também não trata do caso de São Luís do Purunã, que teria torres instaladas em seu território, cujo projeto de desenvolvimento da comunidade é calcado no turismo rural.

Segundo o Relatório de Avaliação de Potencial de Impacto sobre o Patrimônio Arqueológico (RAIPA) foram identificados, na localidade onde passará as linhas de transmissão, 46 sítios arqueológicos, 32 ocorrências arqueológicas isoladas, e quatro Sítios Históricos de Interesse Arqueológico. Segundo o relatório, o impacto causado ao patrimônio arqueológico com a instalação do empreendimento “impedirá a realização de pesquisas futuras, com a completa e definitiva destruição dos vestígios”.

Comunidades tradicionais afetadas 

Os pesquisadores que se debruçaram a analisar o processo de licenciamento da Engie, apontam, ainda, que as linhas de transmissão afetariam mais de 30 comunidades tradicionais que habitam a região, como comunidades quilombolas, indígenas, rurais reassentadas e faxinais.

Os documentos apresentados pela multinacional e publicizados pelo IAT apresentam dados contraditórios em relação a essas comunidades tradicionais. Afirma-se, por exemplo, que “o Licenciamento Quilombola do Empreendimento está sendo conduzido pela Fundação Cultural Palmares”, no entanto, tal estudo não apresenta a anuência da Fundação Palmares e nem o material que foi produzido para a emissão do licenciamento.

Os pesquisadores que analisaram o EIA também apontam que não há anuência da Fundação Nacional do Índio (Funai), mesmo com o Estudo tendo identificado terras indígenas distantes a pouco mais de cinco quilômetros do empreendimento.

O Estudo também identifica assentamentos rurais, mas não foram inseridas as distâncias em relação ao empreendimento. Consta apenas que “nenhum assentamento é interceptado” pelas linhas de transmissão. Porém, os pesquisadores apontam que o mapa da página 658 do EIA sobre as linhas de transmissão do trecho entre Ivaiporã a Ponta Grossa sugere a localização dentro da área de alguns assentamentos rurais.

“Embora haja referência às comunidades tradicionais quilombolas e faxinalenses, suas caracterizações são insuficientes, pois não permitem identificar nem mesmo seus aspectos mais gerais, tais como os meios de acesso, número de famílias, situação socioeconômica etc.”, concluem os pesquisadores. Não há nem mapa da localização dos faxinais.

O diagnóstico, dessa forma, não apresenta as condições necessárias para avaliar os efeitos e impactos que as linhas de transmissão teriam sobre o modo de vida dessas comunidades. Além disso, é preciso avaliar se as estradas que dão acesso a essas comunidades tradicionais seriam comprometidas pela instalação do empreendimento, principalmente, no caso de estradas não pavimentadas. Integrantes da equipe de pesquisadores chegaram a afirmar que, em 20 anos de trabalho, nunca haviam se deparado com um processo de licenciamento tão falho.

Alteração da Beleza Cênica

Segundo os pesquisadores, o empreendimento alteraria para sempre a beleza cênica da região que abriga cânions, corredeiras, relevos residuais, cavernas, cachoeiras e escarpamentos. Estão nessa região, por exemplo, o Parque de Vila Velha e o Cânion do Guartelá.

O valor turístico e científico dessa localidade é imensurável. A instalação dessas quase mil torres de transmissão de energia traria um impacto negativo irreversível. “Considerando que as torres e os cabos de linha de transmissão de energia podem ser notados de grandes distâncias, a escala de abrangência do impacto deixa de ser local para se tornar regional. No que se refere aos impactos cumulativos associados podemos citar: pressão na atividade turística, pressão no patrimônio paleontológico, interferência na qualidade de vida das pessoas com possibilidade de acidentes elétricos, ausência de medidas mitigatórias e de alternativas locacionais, entre outros”, apontam.

Curiosidade

Não há sequer um mapa que mostre a relação das escolas mais próximas ao empreendimento. Essa informação seria importante para municiar programas de educação ambiental, assim como outras ações em benefício dos estudantes que a empresa poderia preocupar-se em propor.

Engie deveria seguir recomendações de conservação e respeitar comunidades locais apontadas pelo Banco Mundial

Os Estudos de Impacto Ambiental da Engie apontavam que os recursos para a implantação dos empreendimentos seriam oriundos de investimento próprio da empresa. Entretanto, a multinacional já estava negociando o financiamento do projeto junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), cujo contrato de nº 202006311 foi estabelecido em 30/03/2020 com o valor de 1.480.641.000,00.

O BNDES é signatário dos Padrões de Desenvolvimento sobre Sustentabilidade Socioambiental da International Finance Corporation (IFC), do Grupo Banco Mundial, que estabelecem diretrizes de riscos e impactos socioambientais ao responsável pela implementação e operação do projeto, no qual devem ser exercidas durante o período de investimento concedido pela IFC. Dessa forma, a Engie deveria ter uma ação ambiental calcada nas recomendações do Banco Mundial, mas não é o que vem fazendo.

Quem é a Engie?

A Engie é uma multinacional francesa que está presente no Brasil há mais de 20 anos. A operação da empresa no país representa o segundo maior faturamento da multinacional no mundo. Até 2008, a empresa era chamada de GDF SUEZ. Responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia, a Engie foi indicada em 2010 para o ‘Public Eye Award’, um “antiprêmio” atribuído todos os anos no Fórum de Davos, na Suíça, à empresa ou organização mais irresponsável social e ambientalmente em todo o mundo.

A empresa foi acusada por organizações ambientais de violar as normas de proteção ambiental e de ignorar os direitos humanos das populações indígenas, ameaçadas pela construção da hidrelétrica.

Em 2012, a Engie retirou US$ 1 bilhão de uma usina australiana antes de o imposto sobre o carbono vigorar na Austrália. A empresa francesa transferiu esse montante em dividendos da Austrália e de volta às empresas controladoras do Reino Unido. O esquema recebeu o nome de Projeto Salmão – uma referência à capacidade do peixe de nadar contra a corrente, exatamente como esses lucros estavam prestes a fazer.

Detalhes intrincados dessas transações surgiram no Paradise Papers, em 2017, um vazamento de 13,4 milhões de documentos para o jornal alemão Suddeutsche Zeitung e investigado pela equipe Four Corners da ABC em parceria com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos.

No ano de 2015, a agência de notícias Reuters divulgou a abertura de uma investigação para apurar possíveis violações das leis anticorrupção dos EUA e do Brasil envolvendo a Eletrobrás, e incluindo a construção da usina de Jirau, de responsabilidade da empresa Engie.

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