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O desperdício de comida e os guardiões de sementes: dois lados de um sistema que merece mais cuidado

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O tipo de assunto que “não se encerra” é o desperdício de alimentos no Brasil e no mundo. Volta e meia alguém relembra, lança uma pesquisa nova ou um fato o faz voltar a ser debatido. O último dado, publicado no site da FAO (organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), diz que o Brasil é considerado um dos dez que mais desperdiçam comida em todo o mundo, com cerca de 30% da produção praticamente jogados fora na fase pós-colheita. Aqui vale lembrar também que o brasileiro gera em torno de um quilo de lixo por dia e 58% desse total são alimentos.

Na semana passada, nas redes sociais apareceu uma notícia de janeiro deste ano contando que agricultores capixabas haviam jogado 20 mil caixas de tomate numa estrada. A reportagem quase justificava a iniciativa, dizendo que “os trabalhadores rurais abriram mão de vender o produto devido à grande queda do preço da fruta”.

Para início de conversa, argumentam os representantes de organizações que tentam pôr o tema na ordem do dia, alimentos não deveriam estar no mercado de ações. Para muitos, este é um pensamento romântico, já que estamos inextricavelmente imersos na concepção moderna da economia que considera normal ver os preços dos grãos subirem ou descerem no embalo das transações financeiras de cada dia.

Mas grãos e sementes deveriam fugir à regra do sistema econômico global, acreditam aqueles que têm uma visão diferenciada do mercado. Produzido pela rede indiana Navdanya de guardiões de sementes e produtores orgânicos espalhados por 18 estados na Índia, o vídeo “Semente viva” (assista acima) traz um olhar crítico ao sistema de venda em massa de sementes e agrotóxicos pelas indústrias transnacionais de alimentos. Vale a pena assistir e refletir.

Bija Didi, uma das agricultoras indianas, guardiã de sementes, entrevistada pela equipe que fez o documentário, conta como é o sistema do Banco de Sementes, que a criadora da rede Navdanya, Vandana Shiva, tem defendido mundo afora como única possibilidade de realmente se acabar com a fome:

“Eu amo dar sementes para as pessoas e receber sementes dos outros, ter novas sementes para plantar em casa. Eu sempre digo: guarde dias para doar sementes e dias para ganhar sementes”, diz Bija Didi.

Há um quê de singeleza nessas palavras e na maneira pela qual os guardiões vão tratando as sementes. As cenas são lindas. Às vezes, elas precisam ser tiradas uma a uma. São descascadas, debulhadas, vão para um enorme pano limpo e colorido que cobre o chão. Depois, são postas dentro vidros com rótulos, tudo muito organizado e tratado de maneira especialmente cuidadosa, quase como se fossem pedras preciosas.

Não é para menos. Ali estão, afinal, o antídoto para as mais de 800 milhões de pessoas que ainda passam fome num mundo onde, não custa lembrar, as 85 pessoas mais ricas viram sua fortuna coletiva crescer US$ 668 milhões ao dia entre 2013 e 2014, o que corresponde a quase meio milhão de dólares por minuto (os dados são da organização mundial Oxfam – veja aqui) .

Essa desigualdade não passa ao largo dos guardiões, que têm dedicado suas vidas para salvar sementes que cultivam com a sabedoria tradicional transmitida ao longo dos séculos. Eles contam com a biodiversidade, com os polinizadores, e recusam-se a usar defensivos agrícolas. Mas basta um olhar para o lado e vem a constatação, anunciada por um dos agricultores – que semeia grãos sem agrotóxicos – no documentário: “Vendedor de pesticidas dirige um carro de quadro rodas e eu não tenho sequer uma bicicleta”.

“The Living seed” é um dos documentários que está sendo realizado para a série “The Living Farms”, que pretende mostrar que é possível pensar num outro modelo de comercializar alimentos que não seja o atual. O filme faz sérias críticas às sementes geneticamente modificadas, que estariam criando um sistema de monocultura e varrendo a biodiversidade, além de causar danos à saúde de quem as come. O sistema empregado pelas corporações, que emprestam dinheiro para que os agricultores possam adquirir as sementes, os pesticidas e pagam a eles um valor considerado injusto também é denunciado.

“Com a padronização de sementes e o incentivo à monocultura, 93% das variedades de sementes de alimentos já foram perdidas”, diz a voz in of no filme.

No artigo “Do pensamento global ao pensamento local”, escrito pelo economista Gustavo Esteva e pelo professor Madhu Suri Prakash para o livro “The Post-Development Reader” (Ed. Zed Books), essa questão se traduz assim: “Como enfrentar as cinco companhias Golias que controlam 85% do comércio mundial de grãos e quase metade da sua produção”. Para os autores, qualquer mudança neste setor vai ter que esperar para sempre enquanto o desafio das grandes for criar consumidores transnacionais que possam dar conta de sua produção.

No relatório “Por trás das marcas”, lançado em 2013 pela Oxfam, a organização registra também a consolidação do mercado de alimentos e aponta o resultado imediato disso: fragilização de pequenos produtores. No cômputo geral, esses profissionais são 80% da população global considerada cronicamente faminta, diz o estudo. O paradoxo dos paradoxos.

“Estima-se que cerca de um terço da população mundial subsiste graças à produção de 404 milhões de propriedades com menos de dois hectares. Como a maioria desses agricultores também é forçada a comprar parte de sua alimentação, quando os preços dos alimentos sobem, muitas vezes suas famílias são obrigadas a optar entre se alimentar, educar seus filhos ou manter tratamentos de saúde essenciais”, diz o relatório.

Agindo localmente

Centenas de pequenos grupos estão realizando, mundialmente, uma forma de produção e distribuição de alimentos que não se obriga a produzir em grande escala. Esta seria a resistência às grandes Golias, acreditam Gustavo Esteva e Madhu Suri Prakash. Entre elas, o artigo dos dois cita a Community Supported Agriculture (CSA) que pensa e age localmente  . A base do projeto, que já existe em muitos lugares do mundo, é estabelecer uma conexão direta entre o produtor de alimentos e o consumidor de alimentos sem que seja preciso uma rede de supermercados a intermediá-los. Dá mais trabalho, mas tem dado certo.

A ideia CSA começou nos Estados Unidos em meados dos anos 80 e em 2012 já existiam mais de seis mil só naquele país. Há uma extensa lista de livros e DVDs que contam histórias bem sucedidas de fazendeiros que decidiram romper a inércia e pensar num modelo diferente de tocar sua propriedade. Entre eles, o já famoso “The Real Dirty on Farmer John”, de 2006.

“Cuidando de seu próprio local de plantar alimento, fazendeiros membros do CSA vão aprendendo devagar a superar o paradigma de ‘comedores industriais’, ou seja, aqueles que são educados para esquecer o dano que as multinacionais provocam quando destroem pequenas famílias de agricultores ao redor do mundo”, dizem os autores do artigo.

Vale lembrar que no processamento e na distribuição de alimentos, tarefas atribuídas às empresas de alimentos, também há desperdício.

Fonte – Amelia Gonzalez, Blog Nova Ética Social de 26 de outubro de 2015

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