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O direito de andar

Durante recente caminhada matinal, deparo-me com um carro vindo na direção contrária. Não andava no meio da rua: ele é que vinha pela calçada. O motorista, visivelmente inconformado com a minha inconformidade, mostrou que ainda restavam alguns centímetros para que eu pudesse seguir meu caminho. Mas o objeto desta coluna são as ruas, e como o paradigma de sua ocupação mudou no intervalo de apenas uma década.

Há pouco mais de um século, a rua era considerada um espaço de todos: pessoas, bicicletas, carros e carroças — ver vídeos de Barcelona youtu.be/aQMsQnHYbIo e San Francisco youtu.be/Uz4AmeSApBE. Era nela que as crianças brincavam. A culpa por acidentes de trânsito recaía quase sempre sobre a parte motorizada. A morte de pedestres era vista como uma grande tragédia, provocando passeatas e monumentos erguidos em memória das vítimas.

Em 1923, moradores de Cincinnati assinaram uma petição exigindo a instalação de um dispositivo que limitasse a velocidade dos carros a 40 km/h. A medida não foi aprovada, mas bastou para galvanizar a indústria automobilística, que temia a queda das vendas em todo o país. Seu objetivo: mudar a responsabilidade da culpa pelos acidentes dos veículos para os pedestres, criando a noção do “pedestre imprudente”. Peter Norton, professor de História da Universidade da Virgínia e autor de Fighting Traffic (Lutando contra o Trânsito), descreve três estratégias adotadas por ela (ver estudo em goo.gl/3XRzlf).

A primeira foi de ordem legal, com a aprovação de leis municipais e também federal limitando a circulação de pedestres. A principal limitação dessa abordagem era o fato de ir contra os costumes da época: quase ninguém obedecia, e a polícia tampouco fiscalizava.

A segunda foi informacional, com a criação de uma agência de notícias que produzia e disponibilizava matérias prontas sobre os acidentes de trânsito (uma economia para os jornais), mas invertia a narrativa sobre a culpa, enfatizando o descumprimento das novas regras pelos pedestres. Outra frente agia nas escolas, alertando as crianças para ficarem longe das ruas.

A terceira buscava uma mudança cultural. Para vender a ideia do “pedestre imprudente”, a indústria automobilística passou a promover o uso da expressão jay walking (hoje jaywalking), algo como “andar como um jeca”. Em vez da repressão penal, ridicularização social.

Combinadas, as três estratégias alcançaram seu objetivo, e as ruas mudaram de dono. O impacto dessa mudança sobre o planejamento urbano das cidades foi profundo. Ruas foram alargadas; áreas imensas alocadas para estacionamento; e as vias, agora exclusivas, passaram a priorizar fluxo e velocidade. Isso deu início a um ciclo vicioso, no qual a estratégia de uso do solo passou a considerar uma sociedade motorizada, e esse novo padrão de ocupação tornava a sociedade cada vez mais dependente dos carros.

Em 1961, Jane Jacobs já observava que as necessidades dos pedestres eram gradualmente sacrificadas. Passaram das ruas para as calçadas, assistindo ao seu contínuo estreitamento e transformação em pista de obstáculos (degraus, buracos, declives acentuados). Talvez sejam essas as barreiras que dificultem, hoje, o avanço dos carros sobre as calçadas. Embora, como mostrei no início, isso não os impossibilite de tentar.

Fonte – Página 22 de abril de 2015

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