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Saia do sofá, mas não largue o refri, diz a indústria

Propaganut

Coca-Cola financia pesquisadores para convencer de que a culpa pela obesidade é do “sedentário” e não da alimentação ruim; América Latina é alvo preferencial

Mexa-se. Faça exercícios físicos. Corra ou caminhe. Se não puder, suba escadas ou varra a casa. Caso falte tempo, não tem problema. Meia hora está de bom tamanho. Mais notícia boa? Pronto: você pode dividir os 30 minutos em três. Isso mesmo. Três sessões de 10 minutos vão te colocar em forma e deixar sua saúde nos trinques. É a fórmula da “felicidade”. Nem podia ser diferente. Esse é o plano de atividades físicas que a sempre feliz Coca-Cola tenta espalhar pelo mundo. Para tanto, a transnacional de refrigerantes conta com profissionais de saúde e pesquisadores posicionados estrategicamente com o objetivo de influenciar políticas publicas e o comportamento individual.

A segunda década do século 21 é o período em que a maior fabricante de bebidas doces do planeta tenta fugir da responsabilidade por aumentar as taxas de obesidade em todos os continentes. Não falamos do ontem. Vivemos isso agora, neste momento. Situação de consenso entre profissionais de atividade física e nutrição, e pesquisadores de alimentos, certo?

Nem tanto. Muitos criticam, embasados cientificamente, o consumo de bebidas açucaradas. Outros, entretanto, ainda sugerem um refrigerante como deleite, principalmente após a realização de exercícios.

Fevereiro de 2012 nos Estados Unidos. Vários “especialistas” escrevem posts para o Mês do Coração Americano (American Heart Month). Todos indicam uma mini-lata de Coca-Cola ou outro refrigerante como lanche. Os textos, que aparecem em blogs de nutrição e atividade física, inclusive nos dos principais jornais estadunidenses, escancaram o resultado de um poderoso esquema de bastidores montado para mostrar produtos da marca de forma positiva.

Ben Sheidler, porta-voz da megaempresa nos EUA, não titubeia e classifica as postagens como “acordos de colocação de produtos que uma empresa pode ter com programas de TV”. Diz mais: “Temos uma rede de nutricionistas com quem trabalhamos”. No entanto, recusa-se a dizer quanto a Coca pagou aos contratados. “Toda grande marca trabalha com blogueiros ou paga talentos”, conclui.

A estratégia de relações públicas com profissionais de saúde aborda o tema “Saúde do Coração”, uma referência a fevereiro de 1963, período em que mais da metade das mortes nos EUA foram causadas por doenças cardiovasculares.

Postagens repetitivas se referem a uma “opção de bebida refrescante após a atividade física, como uma mini-lata de Coca-Cola”. Outros sugerem: “Versões controladas em porções de seus alimentos favoritos, como mini-latas de Coca-Cola.”

O foco nas latas menores não é à toa. As bebidas açucaradas recebem críticas há tempos pelo aumento das taxas de obesidade e doenças relacionadas, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos, demência e câncer. Empurrar as mini-embalagens como maneira de “livrar da culpa” quem bebe refrigerantes é a solução pensada.

A divulgação, portanto, não pode ser feita por “qualquer um”, segundo representes da megaempresa. Em um comunicado, a Coca afirma que apenas deseja “ajudar as pessoas a tomar decisões certas” e que “opta por especialistas em saúde para ajudar a contextualizar os fatos e levar aos consumidores a ciência mais recente sobre nossos produtos e ingredientes”. A maioria dos textos aponta os autores como “consultores para empresas de alimentos”.

Felicidade é o lema, lembra? Por isso, tal “bondade” com a população. É “tanta” a preocupação com a saúde pública que talvez não caiba na mini-embalagem, que pesa 7,5 gramas. Do que se tem certeza, na prática, é de que cabem 106 calorias na latinha de apenas 150 ml.

Nutricionista, a estadunidense Robyn Flipse é uma das que têm artigo patrocinado pela Coca-Cola, um texto publicado por mais de mil veículos de informação dos EUA naquele fevereiro de 2012. Ela jura que sugeriria as mini-latas “mesmo que não fosse paga”. No entanto, admite não beber refrigerantes.

O contrato com a profissional começa com uma agência de relações públicas a serviço da Coca, sugerindo a produção de um artigo sobre saúde do coração. Depois disso, Robyn se torna colaboradora da corporação e da Associação Americana de Bebidas (American Beverage Association) durante anos. Cumpre tarefa cotidiana: produção de conteúdo para mídias sociais, geralmente no intuito de refutar que as bebidas açucaradas são responsáveis ​​pela obesidade. Se pesquisadores da saúde criticam os refrigerantes, lá está ela, perguntando à agência se deve rebater publicamente.

Em contraposição, o grupo Dietistas pela Integridade Profissional (Dietitians for Professional Integrity) reivindica que sejam traçadas linhas mais nítidas entre dietistas e empresas. Fundador da organização, Andy Bellatti assegura que “as empresas contratam nutricionistas e profissionais da atividade física porque eles validam as mensagens corporativas”.

Isso tudo, em um país onde a taxa de obesidade dos adultos cresce regularmente desde 1999 (quando estava em 30,5%). Atualmente, o problema nos EUA já afeta 39,6% da população adulta, de acordo com relatório governamental publicado no ano passado, que também indica a relação do crescimento do número de pessoas obesas com o aumento significativo de enfermidades, a exemplo de doenças cardiovasculares, diabetes e alguns tipos de câncer.

Pelas entranhas; espalhada: da universidade às políticas públicas
Alice Lichtenstein, professora de ciência e política de nutrição da Tufts University, em Massachusetts (EUA),  e membro do comitê de nutrição da American Heart Association (Associação Americana do Coração), entidade extremamente ligada à Coca-Cola, recebedora de fartos financiamentos da transnacional há anos, defende as mini-latas. “Podem ser um movimento na direção certa para alguém que bebe refrigerante regularmente”, comenta.

Ela não está sozinha. Há outros acadêmicos defensores de argumentos dessa linha. O Centro de Pesquisas Biomédicas de Pennington (Pennington Biomedical Research Center ) que o diga. Ali, a Coca-Cola financiou uma pesquisa para “avançar” em estudos sobre excesso de peso. Conclusão? A mais óbvia. O trabalho dos “pesquisadores” é taxativo em garantir que o maior causador de obesidade infantil em todo o mundo é o sedentarismo.

“Sabemos que a dieta e o exercício têm um papel importante na saúde geral e no controle de peso, mas fiquei surpreso ao ver que a atividade física tem um impacto ainda maior no peso das crianças do que pensávamos anteriormente”, diz Peter Katzmarzyk, diretor-executivo em ciência populacional e saúde pública no centro de pesquisas.

“Foi um estudo-padrão financiado pela Coca-Cola, que produziu resultados favoráveis ​​aos interesses de marketing da Coca-Cola”

Críticos do trabalho argumentam que os resultados engordam a velha postura da corporação de bebidas para explicar a epidemia de obesidade.

“Foi um estudo-padrão financiado pela Coca-Cola, que produziu resultados favoráveis ​​aos interesses de marketing da Coca-Cola”, diz Marion Nestle, professora da Universidade de Nova York e autora do livro Food Politics. A esta altura, com evidências em larga quantidade ligando bebidas açucaradas à obesidade, diabetes tipo 2 e outras condições, Marion, uma das mais respeitadas pesquisadoras em nutrição da atualidade, ainda observa: “Pesquisadores podem aceitar financiamento do setor que quiserem, mas não devem esperar que alguém acredite neles.”

Susto

Quando foram anunciados os membros do Comitê Consultivo de Diretrizes de Atividade Física de 2018 nos EUA, que examina as evidências científicas sobre a relação entre atividade física e saúde, e apresenta recomendações de consultoria científica ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos (Department of Health and Human Services), órgão de governo estadunidense, a comunidade científica que pesquisa seriamente a relação entre alimentos ultraprocessados e obesidade se assustou. Com motivos.

As recomendações serão tomadas em conta, juntamente com as de agências públicas e federais, enquanto o departamento desenvolve a segunda edição das diretrizes de atividade física para os norte-americanos. O problema é que nove dos 17 membros do comitê são bolsistas do American College of Sports Medicine, que também recebe o financiamento da Coca-Cola, além de dinheiro da Gatorade, marca de outra gigante das bebidas açucaradas, a Pepsico. Além disso, ao menos dois pesquisadores foram financiados individualmente pela Coca.

O primeiro é Peter Katzmarzyk , que liderou o polêmico estudo de Pennington sobre obesidade infantil, e é o principal beneficiário de uma doação de US$ 6,5 milhões saída dos cofres da Coca-Cola.

Katzmarzyk faz parte do comitê de pediatria do programa Exercício é Medicina (Exercise is Medicine), bancado pela Coca para difundir – com o auxílio de cientistas e profissionais de nutrição e atividade física – a ideia de que o sedentarismo, ou melhor, o sedentário, é o culpado pela epidemia de obesidade e doenças crônicas.

Outro membro do comitê financiado pela Coca, Russell Pate é ex-presidente da primeira associação. É “o cara” quando a Coca precisa de espaço na mídia para contra-atacar os críticos. Pesquisador na Universidade da Carolina do Sul, instituição que acumula mais de US$ 7 milhões vindos da empresa desde 2010, ele foi membro da Rede Global de Balanço Energético (Global Energy Balance Network), extinto em 2015 após denúncias de conflitos de interesse. O grupo de pesquisadores ganhou (má) fama por “duvidar” da ligação entre alimentação e obesidade, e por ter sido, também, criado pela Coca.

O Exercício é Medicina, fundado em 2007, nos Estados Unidos, é um programa da transnacional de refrigerantes em parceria com o Colégio Americano de Medicina dos Esportes e a Associação Médica Americana (American Medical Association) .

Pelas bandas de cá

Em novembro de 2014, o Exercício é Medicina foi oficializado como programa de âmbito nacional na Argentina. Os líderes da ideia são o cardiologista e cientista do esporte Jorge Franchella, que comanda os projetos de atividade física e desportos do Hospital de Clinicas da Universidade de Buenos Aires (UBA), e Sandra Mahecha Matsudo, coordenadora do Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul (Celafiscs) e assessora científica do “Agita São Paulo”, vinculado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Ela é ex-esposa do médico ortopedista brasileiro Victor Matsudo, ambos com reconhecido envolvimento com a Coca. Victor, aliás, foi o responsável pela apresentação no Brasil do controverso estudo sobre obesidade infantil feito pelo Centro de Pesquisas Biomédicas de Pennington.

“Só na Argentina, estão instalados, fora o Exercício é Medicina, mais três programas voltados a incentivar a prática de atividade física”

“Exercitar-se regularmente pode aumentar em até dez anos a expectativa de vida, reduzindo em 50% a probabilidade de desenvolver doenças como câncer, diabetes e doenças cardiovasculares. O programa irá fornecer informações básicas para os médicos encorajarem os pacientes a mudar hábitos sedentários e incorporar o exercício na rotina”, disse Franchella, no evento de lançamento do programa.

A América Latina já tem representantes do Exercício é Medicina em todos os países, com aproximadamente 3 mil profissionais de saúde treinados desde 2011, segundo números do programa. Para se enraizar na região, os cursos teórico-práticos são ministrados a médicos gratuitamente.

E as investidas para culpar indivíduos por problemas de saúde claramente sistêmicos não param. A megacorporação trouxe outros programas para terras latino-americanas. Só na Argentina, estão instalados Copa Coca-Cola de Futebol, Baila Fanta e Sprite Urban Tour, todos voltados “a incentivar a prática regular de atividade física”.

Em material institucional, a gigante das bebidas gaseificadas garante que, com isso, “contribui para o desenvolvimento dos programas e com o compromisso de promover estilos de vida mais ativos e saudáveis, buscando ajudar as pessoas a incorporar o movimento diariamente”.

Obesidade relacionada a câncer, diabetes, doenças cardiovasculares. Se considerarmos somente os argentinos, o número de pessoas obesas teve expansão preocupante em 30 anos, com a duplicação do índice em período pesquisado  pela Organização das Nações Unidas (ONU). Deve ser só coincidência que o país tenha sido apontado por outra pequisa como o maior consumidor de refrigerantes per capita do mundo em 2013.

Mas, sossegue (ops, se exercite!), é tudo culpa do sedentarismo. Nada é responsabilidade das corporações que enfiam altas doses de açúcar em produtos digeríveis ultraprocessados. Para Jorge Franchella, Sandra Mahecha e Coca, o mundo parece mais feliz se você se exercitar e não falar em cortar o refri.

Fonte – Moriti Neto de 23 de março de 2018

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