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A ciência brasileira ainda brilha. Por enquanto…

Instalações brasileiras na Ilha de Trindade, um dos locais estudados pelos cientistas no trabalho de capa da Nature. Foto: Wilton Junior/Estadão – Especial Ilha de Trindade

Pesquisas publicadas em revistas de prestígio internacional mostram o que a ciência brasileira vai deixar de produzir no futuro, se as dificuldades orçamentárias do presente não forem resolvidas com urgência

A ciência brasileira brilhou no cenário internacional nesse último feriado. Em pleno 7 de setembro, uma pesquisa made in Brazil foi capa de uma das mais importantes publicações científicas do planeta: a revista Nature.

Ilustrado por uma imagem aérea do arquipélago de Martin Vaz — as ilhas mais distantes da costa brasileira, a 1.200 km do litoral capixaba —, o trabalho faz uma elucidação pioneira dos processos evolutivos que controlam a composição e a diversificação da biodiversidade marinha de peixes em ilhas oceânicas e montes submarinos.

Se esse não é um tema pelo qual você se interessa com tanta profundidade, não tem problema. Basta saber que o estudo foi muito bem feito e considerado importante o suficiente para ilustrar a capa daquela que é, historicamente, a revista de maior prestígio da ciência mundial. Nada mal, não é mesmo?

E não foi só isso. Também na semana passada, foi publicada na revista Scientific Reportsum estudo brasileiro mostrando o que acontece com células pulmonares expostas à poluição gerada por queimadas na Amazônia. Não é nada, nada bom.

Scientific Reports é uma revista mais nova do grupo Nature, lançada em 2011, na qual cientistas brasileiros vêm publicando com regularidade nos últimos anos. E isso é muito, muito bom.

Chororô?

Mas e aquela história de a ciência brasileira está em crise, sem dinheiro, com institutos de pesquisa e universidades a um passo de fecharem as portas? Se isso é verdade, como é possível que cientistas brasileiros estejam publicando trabalhos nas melhores revistas do mundo? Será que tudo não passa de chororô dos pesquisadores querendo mais dinheiro?

Infelizmente, não. A triste verdade é que esses e outros estudos de alto impacto que estão sendo publicados agora são resultados de pesquisas iniciadas vários anos atrás, quando o nível de financiamento da ciência brasileira ainda era bom — não o ideal, claro, mas suficiente para atender às demandas mais qualificadas da comunidade científica nacional. São exemplos de uma situação positiva do passado, que não existe mais; uma amostra do potencial desperdiçado, de resultados que o Brasil vai perder a capacidade de produzir daqui para frente, por falta de investimentos.

Capa de Nature de 7/9/2017 e imagem do Google Earth, mostrando a localização das ilhas e montes submarinos que foram tema do estudo (Cadeia Vitória-Trindade). A seta mostra a localização do Arquipélago de Martin Vaz, que aparece na foto da capa. Crédito: Nature/Reprodução e Herton Escobar/Estadão, via Google Earth

A pesquisa que virou capa da Nature, por exemplo, foi iniciada sete anos atrás, em 2010, e financiada quase que totalmente por três editais do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — a principal agência de fomento à ciência do governo federal, que hoje está à beira da falência —, e alguns recursos complementares da Fundação O Boticário. O autor principal do estudo, Hudson Pinheiro, é professor associado da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e pesquisador associado da Academia de Ciências da Califórnia, nos EUA, onde fez seu doutorado entre 2013 e 2016, graças a uma bolsa do programa Ciência sem Fronteiras, sob orientação do também brasileiro Luiz Rocha. Outros dois autores, Thiony Simon e Raphael Macieira, foram bolsistas da Capes, a agência de fomento do Ministério da Educação — que também passa por um sufoco orçamentário de grandes proporções.

A pesquisa toda custou cerca de R$ 350 mil, ao longo de vários anos, e dificilmente poderia ser realizada hoje — considerando que o orçamento de auxílio à pesquisa do CNPq está reduzido a quase zero.

Cuidado que vai dar zika …

Claro que nesse ponto você tem o direito de perguntar: E daí? Eu não ligo a mínima para a evolução dos peixes nem respiro fumaça da Amazônia. Então, qual a importância de pesquisar isso?

Pois bem; vamos dar um exemplo um pouco mais prático então:

Em 2016, foram cientistas brasileiros os primeiros no mundo a identificar, confirmar e explicar a relação entre o vírus da zika e a microcefalia, por meio de pesquisas realizadas em caráter emergencial e publicadas nas melhores revistas científicas do mundo, como NatureScience e Lancet.

A ciência brasileira já estava mal das pernas naquele momento, financeiramente falando (o orçamento está em queda desde 2013). Mas é importante lembrar que esses resultados imediatos também são fruto de um investimento muito mais antigo e consistente, em diversas instituições (como a Fiocruz e várias universidades), que foram capacitadas científica e tecnologicamente, ao longo de vários anos, para desenvolver pesquisas sobre dengue, febre amarela e outras arboviroses (doenças transmitidas por insetos, coisa que não falta no Brasil), pelo CNPq, Fapesp, Faperj e outras agências de fomento federais e estaduais.

Aliás, a mesma pergunta feita sobre a evolução da biodiversidade de ilhas oceânicas (“Quem se importa?”) poderia ser feita sobre o vírus da zika alguns anos atrás. O cientista que liderou os esforços de pesquisa em São Paulo no ano passado — o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP —, por exemplo, já estudava o vírus da zika há 20 anos, desde muito antes de ele se tornar uma ameaça à saúde pública. Dez anos atrás, portanto, alguém poderia facilmente olhar para a pesquisa dele e classificá-la como um desperdício de recursos públicos: Pra quê gastar dinheiro estudando um vírus que não causa problema nenhum a ninguém?

Nem precisa mais responder, não é? Todo conhecimento é importante, seja para combater uma doença, seja para conservar a biodiversidade dos oceanos. Não existe inteligência sem informação. Esse é o valor insubstituível da pesquisa básica, que é feita nas universidades e depende quase que integralmente de recursos públicos para sobreviver.

E agora?

A pergunta que não quer calar agora é: Se a epidemia de zika acontecesse agora, em 2017-2018, será que a nossa ciência teria a mesma capacidade de resposta que teve em 2015-2016? E daqui cinco anos? Pode ser que sim, por se tratar de uma questão de saúde pública tão impactante — o governo tiraria dinheiro de algum lugar. Mas pode ser que não. Talvez tivéssemos que esperar que outros países solucionassem o problema para nós.

Recursos humanos qualificados para fazer ciência nós temos, sem dúvida nenhuma. Infraestrutura, também. Mas sem dinheiro, não há máquina nem cérebro que funcione.

Os efeitos mais nefastos desse desmonte orçamentário da ciência brasileira só serão sentidos daqui alguns anos; quando abrirmos as revistas científicas internacionais e não encontrarmos mais os nomes de cientistas nem de instituições brasileiras em suas páginas, porque os estudos pioneiros que deveriam estar começando agora não serão mais feitos. Quando precisarmos de biomédicos, biólogos, geólogos, oceanógrafos ou engenheiros de qualidade para pesquisar e buscar soluções para os diversos problemas do país, mas não encontrarmos nenhum, porque os que eram bons já se aposentaram, e os que deveriam estar se formando agora resolveram fazer outra coisa, ou ir embora do país, porque a ciência brasileira, de repente, parece ser uma carreira sem futuro. E aí já será tarde demais.

Imagem feita com microscópio de duas células-tronco neuronais humanas infectadas pelo vírus da zika. Em vermelho, as proteínas do vírus, marcadas pela técnica de imunocitoquímica. Em azul, os núcleos das células. Imagem de mais uma pesquisa brasileira de alto impacto. Foto: Erick Loiola e Pablo Trindade/IDOR

Fonte – Herton Escobar, O Estado de S. Paulo de 11 de setembro de 2017

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