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A ciência brasileira está falida. E daí?

Produção de soja no Cerrado. Foto: Celso Junior/Estadão

Você pode não saber, mas a ciência brasileira está presente em muitas coisas da sua vida — no supermercado, no posto de combustível, nas farmácias. Tudo isso está sendo colocado em risco pelo corte de investimentos públicos, que ameaça paralisar por completo a pesquisa no país

Você já deve ter ouvido falar que a ciência brasileira está falida. É verdade. Mas e daí? O que isso tem a ver com você, brasileiro, que não é cientista? Por que você deveria se importar com isso? Afinal, o que a ciência brasileira já fez por você? E o que o Brasil tem a perder se os investimentos em ciência continuarem sendo cortados ano após ano?

A resposta é um prato feito. Está na sua frente todos os dias, sempre que você se senta à mesa para uma refeição. Quase tudo que você come no seu dia a dia é produto da ciência brasileira: o arroz com feijão, o bife, o ovo frito, o pãozinho com manteiga na chapa, o suco de laranja, o leite e até o nosso querido cafezinho — nada disso existiria sem a ciência.

Quase todos os produtos que compõem a nossa alimentação básica e dão sustentação à balança comercial brasileira são espécies exóticas, trazidas de outros países e de outros continentes, que precisaram ser adaptadas aos diferentes solos, climas, pragas, topografias e métodos de cultivo do Brasil. E isso só foi possível graças a muita ciência e muito investimento em pesquisa, ao longo de muitas décadas, nas universidades, na Embrapa e várias outras instituições públicas de pesquisa.

Sem ciência, o tão poderoso agronegócio brasileiro não existiria. Fato.

O exemplo mais conhecido (e de maior peso econômico) é o da soja, que é uma planta asiática, de clima temperado, que foi extraordinariamente bem adaptada ao clima quente do Cerrado brasileiro, com enorme produtividade, e hoje é o principal produto do agronegócio nacional. Nossa carne vem do gado zebuíno, que é de origem indiana. A laranja também veio da Ásia, o café é africano, e por aí vai.

Você come ciência brasileira todos os dias, no café da manhã, no almoço e no jantar.

O Brasil não é esse gigante da agricultura só porque tem muita terra e muito sol. É porque tem muita terra, muito sol e muita ciência! Sem esse terceiro ingrediente, os outros dois não nos levariam a nada além da subsistência. E esse esforço de pesquisa tem de ser contínuo; não pode parar nunca — o clima está mudando, novas pragas estão sempre a surgir e novas cultivares, mais produtivas e mais resistentes, precisam ser desenvolvidas continuamente.

Ciência ao volante e na farmácia

Outro exemplo está no tanque de combustível do seu carro (ou ônibus, ou táxi): Não importa se você usa gasolina ou etanol, você dirige ciência brasileira todos os dias.

A gasolina é produzida do petróleo, que hoje é extraído das profundezas do oceano graças a muita ciência e muita tecnologia, desenvolvidas ao longo de muitos anos pela Petrobras, em parceria com universidades e outros centros de pesquisa e empresas nacionais. O etanol é produzido da cana-de-açúcar, que também é uma planta exótica, originária da Ásia, com uma genética extremamente complexa, que foi melhorada e adaptada às condições brasileiras com extrema competência (e extrema produtividade) pelos nossos cientistas. E tem muito o que melhorar ainda.

Pode não parecer, mas um grão de soja, um grão de arroz ou um pé de cana são produtos de altíssima tecnologia, tão avançados e complexos quanto um telefone celular. Essas plantas, como as conhecemos hoje, não existem na natureza — elas são produtos tecnológicos, desenvolvidos pelo homem. Frutos da ciência brasileira.

Se você toma remédio para hipertensão, também deve um obrigado à ciência brasileira. O princípio ativo de um dos medicamentos mais usados no mundo para controle de pressão arterial, conhecido como captopril, foi descoberto no veneno da jararaca por um cientista brasileiro, Sérgio Henrique Ferreira, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, na década de 1960. A indústria brasileira da época não estava capacitada a fazer o desenvolvimento tecnológico necessário para transformar a tal molécula em fármaco, por isso a droga acabou sendo desenvolvida fora do país; mas a ciência básica que deu origem a ela foi 100% brasileira.

Certamente há outros remédios escondidos na biodiversidade nacional — afinal, temos a maior biodiversidade do mundo —, mas para descobri-los é necessário muito mais ciência, muito mais pesquisa, muito mais desenvolvimento tecnológico, e muito mais investimento governamental.

Veneno de jararaca: exemplo de um recurso genético da biodiversidade brasileira que já deu origem a fármacos importantes. Crédito: Paulo Liebert/Estadão

Conhecimento básico

Estes são apenas alguns exemplos de como a ciência brasileira impacta a nossa vida. Certamente há muitos outros, talvez menos óbvios, mas também muito importantes. Não só no que diz respeito a inovações tecnológicas, mas também à geração de conhecimento.

Por exemplo: Nós só podemos dizer que o Brasil tem a maior biodiversidade do mundo, e nos orgulhar disso, graças à ciência. Graças a muitos e muitos biólogos que trabalham incansavelmente no campo, nos museus e nos laboratórios Brasil afora, coletando, estudando e descrevendo as espécies da nossa fauna e da nossa flora, ao custo de muito suor e muito investimento em pesquisa.

Conhecimento não é grátis, e não brota espontaneamente do solo. Ele precisa ser produzido, e isso exige pessoas, exige investimento. Muito do conhecimento gerado pela ciência brasileira é de interesse direto ou até exclusivo do Brasil — os outros países não vão produzi-lo por nós.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a relação umbilical entre Ciência e Educação. A ciência não é só uma finalidade, mas também uma ferramenta indispensável à formação de recursos humanos de alta qualidade nas universidades. Os melhores professores e os melhores alunos são aqueles envolvidos com pesquisa científica. As melhores universidades do mundo são as melhores do mundo porque fazem pesquisa, e não o inverso.

Os países mais avançados, com as economias mais fortes e com a melhor qualidade de vida, são aqueles que mais investem em pesquisa. E atenção: eles não investem em pesquisa porque são ricos; eles são ricos porque investem em pesquisa! Pesquisa gera ciência, que gera tecnologia, que gera inovação, que gera produtos, que geram riqueza.

Todo mundo enxerga isso; menos a classe política brasileira.

Todos os países que enfrentaram crises financeiras nas últimas décadas aumentaram seu investimento em pesquisa para sair da crise; menos o Brasil, que insiste em fazer o contrário. O orçamento federal destinado a Ciência e Tecnologia no Brasil está em queda livre desde 2013, e hoje é menos da metade do que era 10 anos atrás (sendo que o número de pesquisadores em atividade no país dobrou nesse mesmo período). Vários laboratórios importantes estão prestes a fechar as portas, milhares de estudantes/pesquisadores correm o risco de ficar sem bolsa, e a proposta do governo federal é cortar esse orçamento mais ainda em 2018, comprometendo de forma gravíssima a capacidade do país de fazer ciência, produzir conhecimento e gerar novas tecnologias — alimentos, remédios, combustíveis, modelos climáticos e por aí vai.

O que o Brasil tem a perder com isso? Muito.

Fonte – Herton Escobar, O Estado de S. Paulo de 06 de setembro de 2017

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