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Agrotóxicos: uma conta alta que a sociedade ainda não se conscientizou de que pagará

“O agrotóxico, ao mesmo tempo que é uma expressão desse modelo baseado na revolução verde, mecanização no latifúndio, na concentração da terra, está dando mostras de que não é sustentável para o desenvolvimento do país” adverte o pesquisador.

O Brasil sustenta duas posições de destaque no campo do agronegócio: é o maior consumidor de agrotóxicos e um dos maiores exportadores de commodities do mundo. Essas duas colocações estão imbricadas e, segundo Fernando Carneiro, são a expressão de um modelo de economia para o campo e para o país. Para o pesquisador, os danos causados pelos agrotóxicos se estendem por diversas áreas, como a social, ambiental, política e econômica, e devem continuar reverberando ao longo do tempo em função dos desequilíbrios que provocam e intensificam. “Essa conta nunca é mostrada para a sociedade, é uma conta que está escondida e é pouco estudada pela academia”, aponta em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG, com pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Atualmente é pesquisador da Fiocruz Ceará e do Núcleo de Estudos em Saúde Pública – NESP da UnB. Também coordena o GT Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – OBTEIA.

Carneiro estará nesta segunda-feira, dia 24 de Agosto, na Unisinos São Leopoldo, ministrando a palestra Agrotóxicos, ambiente e sustentabilidade, debatendo o filme O Veneno está na mesa e participando do Lançamento do “Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde”, durante o Seminário Agrotóxicos: Impactos na Saúde e no Ambiente, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em parceria com o PPG em Saúde Coletiva da Unisinos.

A entrevista foi publicada, originalmente, na revista IHU On-Line, no. 470.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância do debate sobre o uso de agrotóxicos?

Fernando Carneiro – O debate sobre o uso de agrotóxicos é emblemático, simbólico para pensarmos o futuro do nosso país. Portanto, não é um debate trivial, pois o agrotóxico é a melhor expressão de um modelo de economia para o campo e para o país que tornou o Brasil o maior exportador de commodities do planeta e também o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Então esse debate é expressão e resultado dessa conjuntura.

No mês de maio, por exemplo, mais de 50% de nossa pauta de exportação foram os produtos primários agrícolas. Essareprimarização da economia, onde exportamos bens primários com valor agregado para a manufatura da indústria, teve seu ciclo de prosperidade, principalmente, durante o governo Lula, mas agora também boa parte dessa crise econômica de 2015 é um sinal do esgotamento desse modelo.

Então o agrotóxico, ao mesmo tempo que é uma expressão desse modelo baseado na revolução verde, mecanização no latifúndio, na concentração da terra, está dando mostras de que não é sustentável para o desenvolvimento do país. Ao sabor de qualquer crise internacional, abala-se a produção da economia, além de ser um modelo que contamina as pessoas e o meio ambiente. Essa conta nunca é mostrada para a sociedade, é uma conta que está escondida e é pouco estudada pela academia. Com o interesse de salvar esse modelo, o que se faz hoje, a exemplo do Legislativo e do Executivo, é maximizar tal modelo, e não buscar alternativas, como a agroecologia, que se baseia na biodiversidade, ancorada num pensamento de futuro sustentável de país.

Toda essa discussão sobre os agrotóxicos nos leva a debater um projeto de futuro, a crise de investimento do país e a crise do modelo de desenvolvimento, com essa marca brasileira de maior exportador de commodities do planeta. Realmente não é um assunto trivial, e é de interesse de toda a população, tanto dos que vivem no campo quanto dos que vivem na cidade.

“O agrotóxico é a melhor expressão de um modelo de economia para o campo e para o país”

IHU On-Line – Com que objetivo foi criado e qual é o papel do Dossiê Abrasco nas discussões sobre o uso de agrotóxicos?

Fernando Carneiro – A ideia do dossiê surge no final de 2011 justamente quando existia um total domínio desse pensamento, que é muito divulgado pela mídia, de que não há nada a fazer, de que temos de nos sujeitar ao modelo do agronegócio, da cultura de concentração de terra, do uso de agrotóxicos, e de que não há outro caminho. Então, quando se colocou isso de forma muito acentuada, tanto no plano acadêmico quanto no plano do governo, no campo científico, nós, enquanto pesquisadores de questões da saúde pública, percebemos que era importante apresentarmos o ponto contraditório.

Na ciência se costumam fazer artigos científicos, que muitas vezes são retalhos de pensamentos a partir dos quais não se tem condições de fazer uma análise mais detalhada a respeito do tema. Então nossa ideia, e acho que foi o diferencial do dossiê, foi reunir um grande grupo de cientistas e organizações preocupados com estas questões e analisar o conhecimento disponível de maneira integrada. Não negamos esse conhecimento, mas, por exemplo, ao analisarmos o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA [1] , identificamos cada composto químico encontrado e o que cada estudo dizia sobre tais elementos, que implicações teriam, e tudo isso foi discutido à luz de um conselho plural.

Durante o processo de discussões nesse conselho, vimos que tudo o que foi debatido era muita coisa para fecharmos o livro, ou em uma parte. Também identificamos diversos momentos políticos muito importantes para o Brasil: o Congresso Mundial de Nutrição, no início do ano de 2012; no meio desse mesmo ano a Cúpula dos Povos [2] e a Rio+20 [3]; e no final o Congresso da Abrasco [4]. Assim, fomos lançando partes do dossiê de acordo com a temática desses eventos. Então a primeira parte foi ligada à segurança nutricional. Nós nos surpreendemos com o impacto na mídia, na sociedade, e isso nos deu energia para continuar esse trabalho voluntário e militante. Na Cúpula dos Povos, tinha-se uma perspectiva de movimento e lançamos a segunda parte: “Agrotóxicos, saúde, ambiente e sustentabilidade”, e no congresso da Abrasco, o maior da América Latina, discutimos a ecologia de saberes.

Nesse momento, quando falamos de ecologia de saberes, trazemos não só o conceito científico, mas também os saberes dos movimentos sociais que lutam por um outro modelo de desenvolvimento. Essa é uma outra grande novidade do dossiê. Ele não valoriza só o conhecimento científico, mas também os outros diversos saberes, como os oriundos das lutas desses povos pela sua sobrevivência e por um outro modelo social. Isso nos fez inovar na forma e no conteúdo do dossiê. Os 45 autores, a grande maioria acadêmicos, são também lutadores sociais com notável experiência na temática. Esse trabalho promove um diálogo de saberes que vai além da ciência, complementando-a com outros olhares e ideias.

Com os estudos realizados para a construção do dossiê se concebe um ciclo onde não só é denunciada a situação do que está acontecendo no país, de forma qualificada, como também é tratado um rol de alternativas e propostas no campo da agroecologia para superar os problemas. Posso dizer que essa é a grande novidade do livro que está sendo lançado.

“Ao se tentar resolver um problema de saúde pública, acaba criando outro”

IHU On-line – Como está o trabalho de divulgação do Dossiê Abrasco?

Fernando Carneiro – Nós já temos agendados pelo país mais de 30 lançamentos, em vários locais, como universidades, encontros de estudantes, encontros científicos, eventos no campo do cinema, e estamos nos desdobrando para atender a quantidade de solicitações de lançamentos. Também estamos lançando o dossiê nos movimentos sociais, que o identificam como material de insumo para luta. Então, estamos percebendo que o livro não está se direcionando só para a academia, mas também os movimentos sociais estão o entendendo como uma ferramenta de luta e estão lançando em seus congressos, sendo uma boa reflexão para esses atores sociais. A mídia também tem nos procurado para fazer reportagens a partir do que leem no dossiê.

A novidade agora é que esse material está tendo uma boa recepção na América Latina. A nossa ideia é de que isso também incentive movimentos de outros países a fazerem dossiês a partir das suas realidades. Estamos providenciando a tradução do dossiê para o espanhol e vamos lançá-lo no Congresso Latino-Americano de Agroecologia, da Sociedade Latino-Americana de Agroecologia – SOCLA, em outubro agora, na Argentina. Então, vamos lançar em La Plata a versão em espanhol e acreditamos que seja um estímulo para que outros países da América Latina também possam desenvolver seus dossiês nessa perspectiva crítica e integrada, reunindo vários cientistas e movimentos sociais. A expectativa é abrirmos uma frente de desdobramentos nessa região.

IHU On-Line – O senhor comentou que as próximas etapas das pesquisas da Abrasco abordariam os eixos agrotóxicos urbanos e guerra química contra populações vulnerabilizadas. Em linhas gerais, de que tratam esses dois eixos e como estão as pesquisas sobre esses desdobramentos?

Fernando Carneiro – Nós ainda estamos nos organizando para isso, porque vai envolver muita dedicação, já que é um tema bastante polêmico. No caso dos agrotóxicos urbanos, o grande problema é a questão da saúde, e nós como militância da saúde coletiva vamos discutir um tema que vai envolver muitos conflitos, realmente um grande desafio. O que eu posso adiantar que nós já estamos vendo como outra preocupação é a utilização, pelo Ministério da Saúde, do Malatathion [5] para o combate à dengue. Essa substância está sendo apontada como um provável cancerígenohumano. Então você imagina, o setor de saúde utilizando para controlar um problema de saúde pública um veneno que pode causar câncer! O debate sobre esse assunto tem de entrar no mérito da própria lógica do programa de controle da dengue no Brasil que, infelizmente, aposta nessas medidas.

Sabemos que para algumas prefeituras a chegada do fumacê [6] é uma coisa simbólica, pois o veneno aparece e dá uma ideia de efetividade da ação do Estado. Mas, para se ter uma ideia, para o fumacê matar um mosquito alado, a gotícula do veneno tem que entrar em contato com esse mosquito. Então é um método muito ineficaz, porque ele só atinge formas aladas, ou seja, aqueles que estão voando, e as que estão em outros locais não são atingidas, e ainda muitas vezes não tem calibração adequada, etc. Sabemos também que a dengue é uma doença que tem uma determinação socioambiental muito importante, por isso é preciso atuar de forma integrada, por exemplo, atingindo os criadouros, e observando a questão da reserva de água em tempos de crise hídrica. Dessa forma, há uma série de desafios e não podemos nos resumir a implantar uma estratégia que a cada dia se mostra mais ineficaz.

A nossa crítica está muito voltada a isto: ao se tentar resolver um problema de saúde pública, acaba criando outro. Então nós vamos incorporar mais pesquisadores com conhecimento sobre o tema, buscando identificar estudos que tenham avaliado esse problema, para contribuir para um debate visando um aprimoramento do programa de controle da dengue, que a própria saúde pública não dá uma linha.

“A praga é uma invenção do homem, porque em função dos desequilíbrios naturais ela encontra terreno fértil para se reproduzir”

IHU On-Line – De que se trata em linhas gerais especificamente a parte “Agrotóxicos, ambiente e sustentabilidade”, que o senhor vai abordar no seminário do IHU?

Fernando Carneiro – Vou trabalhar principalmente a discussão do impacto sobre os ecossistemas e as relações que isso tem com o atual modelo de desenvolvimento brasileiro para a agricultura, além da questão da Sustentabilidade, uma palavra muito utilizada hoje.

Esse processo de busca de lucro rápido, entre outras coisas, gerou um capitalista mais inteligente, que tem visto que seu próprio lucro não traz dinheiro, porque quando ele está exportando o produto dele, também está exportando água, solo, etc. Assim, os meios de produção estão se exaurindo, o que vai dificultando a própria reprodução desses produtos nessa lógica de organização. Esse modelo está chegando ao seu limite, e há um reconhecimento da própria Embrapa [7] sobre isso. Recentemente a Embrapa está reavaliando a gestão das técnicas de aprimoramento das grandes monoculturas, e está vendo que é importante diversificar a produção de forma a reutilizar a terra horizontalmente e também trabalhar verticalmente, ou seja, trabalhar com as florestas, e plantações consorciadas [8]. Assim se diminui a possibilidade do que se batiza de pragas, que nada mais são do que insetos que são inimigos naturais que se reproduzem em grande escala. A praga é uma invenção do homem, porque em função dos desequilíbrios naturais ela encontra terreno fértil para se reproduzir.

Então é um tema que não está só no campo da contra-hegemonia, mas também se inscreve no debate da própria sobrevivência desse modelo. Também vou falar um pouco sobre os desafios do Plano Nacional de Agroecologia, doPrograma Nacional de Redução de Agrotóxicos, que são políticas recentes que ainda não se desenvolveram plenamente e que são fundamentais para que se transforme a realidade para que realmente possamos ter um pouco mais de sustentabilidade em nosso processo de produção agrícola.

Notas

[1] Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA: foi iniciado em 2001 pela Anvisa, com o objetivo de avaliar continuamente os níveis de resíduos de agrotóxicos nos alimentos de origem vegetal que chegam à mesa do consumidor. O PARA é coordenado pela Anvisa, que atua em conjunto com as Vigilâncias Sanitárias – VISA e com os Laboratórios Centrais de Saúde Pública – Lacen. (Nota da IHU On-Line)

[2] Cúpula dos Povos: foi um evento paralelo à Rio+20, organizado por entidades da sociedade civil e movimentos sociais de vários países. O evento aconteceu entre os dias 15 e 23 de junho de 2012 no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, com o objetivo de discutir as causas da crise socioambiental, apresentar soluções práticas e fortalecer movimentos sociais do Brasil e do mundo. O grupo responsável pela organização da Cúpula dos Povos foi o Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20 – CFSC. O comitê reuniu uma grande diversidade de organizações brasileiras atuantes em várias áreas como direitos humanos, desenvolvimento, trabalho, meio ambiente e sustentabilidade. (Nota da IHU On-Line).

[3] Rio+20: a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável – CNUDS, conhecida também como Rio+20, foi uma conferência realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012 no Rio de Janeiro, cujo objetivo era discutir a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável. Considerado o maior evento já realizado pelas Nações Unidas, a Rio+20 contou com a participação de chefes de estados de 190 nações que propuseram mudanças, sobretudo no modo como estão sendo usados os recursos naturais do planeta. Além de questões ambientais, foram discutidos, durante a CNUDS, aspectos relacionados a questões sociais como a falta de moradia e outros. (Nota da IHU On-Line).

[4] Congresso da ABRASCO: o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva é considerado um dos mais importantes fóruns científicos da área em todo o mundo. Participam do evento milhares de sanitaristas, epidemiologistas, cientistas políticos, cientistas sociais, comunicadores, especialistas em políticas públicas, profissionais e trabalhadores da saúde, gestores e técnicos da saúde, além de militantes de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil atuantes na área da saúde. O congresso, que também é conhecido como Abrascão, acontece a cada três anos e sedia a Assembleia Geral da entidade, que define sua nova diretoria e conselho. (Nota da IHU On-Line)

[5] Malatathion: é um inseticida inibidor da acetilcolinesterase, que não existe naturalmente. Em estado puro é um líquido incolor. Requer assessoria profissional para o uso contra insetos em explorações agrícolas e em jardins, para tratar piolhos na cabeça de seres humanos e para tratar pulgas em animais domésticos. Usa-se também para matar mosquitos e a mosca da fruta, em extensas áreas ao ar livre. (Nota da IHU On-Line)

[6] Fumacê: técnica de combate de pragas urbanas, como o mosquito da dengue, a partir da pulverização de inseticidas ao ar livre. (Nota da IHU On-Line)

[7] Embrapa: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é uma instituição pública de pesquisa vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil. Criada em 26 de abril de 1973, tem como objetivo o desenvolvimento de tecnologias, conhecimentos e informações técnico-científicas voltadas para a agricultura e a pecuária brasileira. (Nota da IHU On-Line)

[8] Cultivo de plantas em consórcios: é praticado há séculos, sobretudo por pequenos produtores das regiões tropicais, na tentativa de obter o máximo de benefícios dos recursos disponíveis. O consórcio de culturas é caracterizado pela maximização de espaço mediante o cultivo simultâneo, num mesmo local, de duas ou mais espécies com diferentes características quanto à sua arquitetura vegetal, hábitos de crescimento e fisiologia. As plantas podem ser semeadas ou plantadas ao mesmo tempo ou terem época de implantação levemente defasada, mas compartilham dos mesmos recursos ambientais durante grande parte de seus ciclos de vida, fato que leva a forte interatividade entre as espécies consorciadas e entre elas e o ambiente. Essa técnica é extremamente interessante especialmente quando se quer maximizar o aproveitamento da água disponível no solo ou do período chuvoso, tornando-se fundamental em regiões do Brasil onde, ao longo do ano, ocorrem duas épocas bem distintas, uma chuvosa e outra seca (que pode durar até 6 meses). Compondo o Sistema Plantio Direto – SPD, a consorciação de culturas, além de proporcionar uma série de outros benefícios, como o auxílio no controle de plantas daninhas, promove excelente cobertura viva e morta do solo, durante o maior período de tempo possível.

Fonte – Leslie Chaves, IHU / EcoDebate de 24 de agosto de 2015

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