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Tramontina comprou madeira de serraria flagrada com trabalho escravo

Investigação revela ainda trabalho escravo no corte de madeira para exportação, ligando o crime a empresas que fizeram obras no Central Park e Brooklyn Bridge

A rede que abastece madeira para os utensílios domésticos da Tramontina incluiu, em anos recentes, uma serraria flagrada com trabalho escravo contemporâneo. A fabricante abastece as lojas do Walmart no Brasil, Carrefour e do Grupo Pão de Açúcar, entre elas o Ponto Frio, as Casas Bahia e o Extra.com. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que interrompeu as compras ao tomar conhecimento dos problemas da serraria flagrada pelo crime (leia a resposta completa da Tramontina).

A mesma realidade foi detectada em exportadores que compraram de serrarias amazônicas responsabilizadas por submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo. Elas vendem madeira para empresas como a USFLoors, que abastece a rede de materiais para construção norte-americana Lowe´s. Outro comprador é a Timber Holdings, que já forneceu madeira para obras no Central Park e na Brooklyn Bridge.

Tanto a US Floors quanto a Timber Holdings, procuradas pela reportagem, disseram que a madeira comprada por eles não é a mesma envolvida no flagrante de trabalho escravo.

A rede de relações comerciais que liga as marcas brasileiras e internacionais às serrarias foi descoberta em investigação da Repórter Brasil e confirmada pelas empresas. Embora a reportagem não possa traçar o destino exato de cada pedaço de madeira, pois os produtos se misturam nos vendedores intermediários, a investigação revela que a rede de fornecedores de grandes grupos varejistas e da construção civil está contaminada pela prática criminosa. Ou seja, essas marcas estão financiando redes que exploram o trabalho escravo.

Os casos investigados começam em duas serrarias que operam no oeste do Pará, um dos principais polos de expansão da indústria madeireira na Amazônia brasileira. Uma delas é a Madeireira Iller. Em dezembro de 2012, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 31 pessoas que atuavam no beneficiamento, corte e transporte de madeira nativa para a empresa, em Santarém. A empresa madeireira também foi denunciada por delitos ambientais e seus donos chegaram a ser presos em 2015 por esse motivo.

Entre 2012 e junho de 2015, a Madeireira Iller foi um dos fornecedores da planta industrial da Tramontina em Belém, no Pará, local onde a empresa fabrica móveis e utensílios de madeira vendidos em todo o Brasil.

Outro caso envolve a Bonardi da Amazônia, madeireira que empregava nove pessoas resgatadas da exploração do trabalho escravo em outubro de 2012. A empresa foi fornecedora da Tradelink Madeiras, indústria de Ananindeua, também no Pará, entre agosto do mesmo ano e julho de 2015.

A Tradelink Madeiras pertence ao Tradelink Group, sediado em Londres. Em resposta à reportagem, o grupo afirma que faz inspeções de campo em seus fornecedores e que não encontrou irregularidades trabalhistas na Bonardi da Amazônia em junho de 2012. Ou seja, quatro meses antes do flagrante de trabalho escravo feito pelo Ministério do Trabalho, a serraria foi visitada por funcionários da Tradelink.

Após o flagrante, a multinacional afirma que decidiu manter negócios com o fornecedor pois a madeireira se comprometeu a regularizar a situação de seus funcionários (leia a resposta da Tradelink)

Os produtos da Tradelink Madeiras têm alcance internacional. A rede Lowe’s, segunda maior cadeia varejista de materiais de construção nos Estados Unidos, já comercializou matéria-prima oriunda da empresa.

Trabalhadores escondidos na mata

Em dezembro de 2012, quando foram resgatados por fiscais do Ministério do Trabalho, os funcionários da Madeireira Iller viviam em condições rudimentares, incompatíveis com a sofisticada rede de compradores com quem seus empregadores faziam negócios. Nas áreas onde as árvores eram cortadas, em plena floresta amazônica, dormiam em barracos de lona ou palha sem paredes para protege-los dos perigos da mata. Sobre o chão de terra batida e ao ar livre, as refeições eram preparadas em fogareiros improvisados, com alimentos armazenados sem condições mínimas de higiene.

Não havia banheiro nesses locais. A água era obtida em um igarapé, também frequentado por animais silvestres, e armazenada num tambor de óleo de motor.

Trabalhando em uma atividade com alto risco de acidentes, os trabalhadores não tinham equipamentos de proteção, carteira assinada e ganhavam apenas pelo que produziam. Nem o salário mínimo estava garantido no final do mês, tudo dependia do número de árvores derrubadas.

As condições encontradas “aviltam a dignidade humana e caracterizam situação degradante”, registraram os auditores do trabalho no relatório da fiscalização, que enquadra o caso dentro do conceito de trabalho escravo contemporâneo, expresso no Código Penal brasileiro. Por conta disso, os trabalhadores foram resgatados do local e a empresa foi responsabilizada pelo crime.

Ainda segundo os auditores, o dono da serraria teria mandado 23 funcionários fugirem e ficarem escondidos da ação fiscal. O objetivo seria evitar o flagrante das violações. Os trabalhadores foram obrigados a se esconder dentro da mata durante cinco dias, período em que ficaram expostos a todos os riscos da floresta, até que finalmente foram encontrados pelos fiscais.

Três anos depois, em 2015, os proprietários da Madeireira Iller foram acusados de diversos crimes ambientais e chegaram a ser presos durante a Operação Madeira Limpa, ação do Ministério Público Federal para o combate à exploração ilegal de madeira e grilagem de terras. A madeireira foi multada em R$ 1,8 milhão por ter em depósito madeira sem comprovação de origem legal, além de apresentar informações falsas nos sistemas oficiais de controle florestal.

A Repórter Brasil entrou em contato com Írio Luiz Orth, da família proprietária da Madeireira Iller e, segundo a fiscalização trabalhista, o principal responsável pela administração da empresa. Ele declinou o pedido de entrevista.

Entre 2012 e junho de 2015, a Madeireira Iller foi um dos fornecedores da planta industrial da Tramontina em Belém, no Pará, local onde a empresa fabrica móveis e utensílios de madeira. Os produtos do grupo Tramontina, líder nacional no mercado de utensílios para cozinha, são vendidos pelos principais varejistas do Brasil. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que interrompeu as compras assim que tomou conhecimento dos problemas da Iller, em 2015 – ou seja, três anos após o flagrante.

Controle da Tramontina não identificou trabalho escravo

A Tramontina afirmou, por meio da assessoria de comunicação, que contrata consultores para avaliar presencialmente as condições de trabalho dos seus fornecedores. Questionada se havia identificado irregularidades trabalhistas na Madeireira Iller em 2012, a empresa relata que a avaliação interna retratou uma realidade bastante diferente da encontrada pela fiscalização. “Nas visitas feitas pela Tramontina, foi possível verificar a existência de refeitório, alojamentos, uso de uniformes e equipamentos de proteção individual. Na hipótese de haver trabalhadores em outros locais, isso não chegou ao conhecimento da empresa”, diz a nota da empresa.

A Madeireira Illler continuou abastecendo a Tramontina até junho de 2015. O corte ocorreu depois que foi constatado que esse fornecedor “provavelmente processava madeira de projetos de origem legal e outros projetos de origem duvidosa”.

Três meses antes disso, no entanto, a Madeireira Iller já integrava a “lista da transparência” do trabalho escravo, documento que divulga o nome das empresas flagradas pelo governo federal praticando esse tipo de crime. A inclusão dos empregadores na lista ocorre após a conclusão do processo administrativo do Ministério do Trabalho relativo às fiscalizações, que garante direito de defesa aos autuados.

A lista é elaborada pelo Ministério do Trabalho por solicitação, por meio da Lei de Acesso à Informação, da Repórter Brasil e do Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Inpacto). A “lista de transparência” surgiu para preencher o vazio de informação deixado pela ausência da “lista suja” do trabalho escravo – cadastro de empregados flagrados por esse crime, publicado semestralmente pelo Ministério do Trabalho de 2003 a 2014. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu uma liminar que suspendia a publicação a pedido de uma associação de incorporadoras imobiliárias. Desde junho de 2016, porém, o STF liberou a divulgação da “lista suja”, mas ela segue suspensa por decisão do governo federal.

Tal como era com a “lista suja”, a “lista de transparência” tem sido utilizada por empresas formalmente comprometidas em combater a escravidão em suas redes de fornecedores (consulte os nomes na última lista aqui). Elas incluem, por exemplo, os associados do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que assumem o compromisso de definir restrições comerciais aos empregadores flagrados com o crime.

A Repórter Brasil perguntou à Tramontina se a empresa usa a “lista da transparência” no controle de seus fornecedores. “Sempre utilizamos e continuaremos utilizando”, disse a empresa. Por meio de nota, afirmou que, a partir de 2016, reduziu de seis para três meses o prazo para a atualização de cadastros que preveem o descredenciamento de fornecedores envolvidos com trabalho escravo e crimes ambientais.

Os três principais grupos varejistas do Brasil – Walmart, Carrefour e Pão de Açúcar – também se comprometem a restringir negócios com empresas da “lista da transparência”. Tendo em vista que todos são clientes da Tramontina, a Repórter Brasil solicitou o posicionamento deles sobre o caso.

O Carrefour informou que repudia qualquer forma de trabalho análogo ao de escravo ou práticas contrárias à legislação ambiental. Já o Walmart e o grupo Pão de Açúcar (dono do Ponto Frio, Casas Bahia e Extra.com) ressaltaram que a Tramontina já havia tomado medidas para remover a Madeireira iller de sua cadeia de fornecimento. Clique nos nomes das empresas para ver, na íntegra, o posicionamento do Carrefour, do grupo Pão de Açúcar e do Walmart.

Tradelink e Lowe’s

Outra madeireira paraense flagrada empregando mão de obra escrava é a Bonardi da Amazônia. Em outubro de 2012, o Ministério do Trabalho resgatou nove trabalhadores que extraíam madeira nativa para a empresa em Altamira, Pará.

Eles estavam alojados em barracos no meio da floresta, com estrutura de pau retirado da mata. Eram cobertos com lona plástica e tinham piso de chão batido. O local servia como dormitório e a área de refeição. Os trabalhadores tomavam banho e lavavam as roupas em um córrego próximo aos barracos. Não havia banheiro no local, que ficava a 110 quilômetros da cidade mais próxima.

Assim como no caso da Madeireira Iller, os trabalhadores não tinham contratos de trabalho formalizados, e eram pagos por produção. As condições degradantes de alojamento e higiene identificadas pela fiscalização levaram a Bonardi da Amazônia a ser responsabilizada pelo emprego de mão de obra escrava no local, em consonância com um dos critérios que tipificam esse crime no Código Penal brasileiro.

Procurada pela Repórter Brasil, a Bonardi da Amazônia afirmou que assinou um acordo com o Ministério Público do Trabalho para regularizar a situação dos funcionários, e que cumpriu todas as exigências do governo brasileiro. (Leia a resposta da Bonardi)

Em 2012, a Tradelink Madeiras era um dos clientes da Bonardi da Amazônia. A empresa afirma que visitou o projeto de manejo desse fornecedor quatro meses antes da fiscalização do Ministério do Trabalho. Segundo a Tradelink, não houve, na ocasião, nenhuma constatação de irregularidade trabalhista no local.

Após o resgate, a madeireira continuou como fornecedora da Tradelink até julho de 2015, mesmo após ter seu nome incluído na “lista da transparência” do trabalho escravo, em março daquele ano. Segundo a Tradelink, o acordo firmado entre a Bonardi da Amazônia e o Ministério Público do Trabalho – que foi devidamente cumprido, segundo o próprio Ministério – foi o motivo pelo qual a empresa decidiu manter a madeireira entre os seus fornecedores após o flagrante (Leia as respostas da Tradelink).

Em 2015, um dos clientes da Tradelink nos Estados Unidos foi a USFloors, que produz pisos de madeira vendidos, por exemplo, pela rede varejista Lowe’s, a segunda maior cadeia de materiais de construção norte-americana. A Lowe’s possui mais de 1,7 mil lojas no país, além de também estar presente no México e no Canadá. A USFloors confirmou que madeira adquirida pela empresa da Tradelink foi posteriormente vendida à Lowe’s. No entanto, a empresa afirma que essa matéria-prima não era a mesma que a Tradelink havia adquirido da Bonardi da Amazônia. A mesma informação foi dada pela Tradelink, quando procurada pela reportagem.

“Eu fui pessoalmente à fábrica da Tradelink no Brasil e sentimos que, entre todas as fábricas visitadas, a Tradelink era a única com procedimentos adequados para garantir o cumprimento das regulamentações locais e internacionais”, avalia Philippe Erramuzpe, diretor de Operações da USFloors. Em nota enviada à Repórter Brasil, Erramuzpe afirma que a empresa parou de comercializar este produto importado do Brasil via Tradelink devido à “baixa performance de vendas”. O diretor afirma que os fornecedores da USFloors são obrigados a “certificar que o material não é produzido em violação com as leis e regulações locais” e encerra a nota afirmando que “apoia integralmente” o trabalho de investigação da reportagem. (Leia a íntegra do posicionamento da USFloors).

A Repórter Brasil  tentou, por diversas vezes, contato com a Lowe´s, por telefone e por email. O varejista, no entanto, não respondeu aos pedidos de esclarecimento encaminhados.

Brooklyn e Central Park

Outro cliente regular da Bonardi da Amazônia, desde 2012 até os dias atuais, é a Ronardi Comercial Exportadora de Madeiras, uma trading brasileira sediada emColombo, no Paraná. Seus clientes incluem empresas norte-americanas, como a Timber Holdings USA. Trata-se de uma fabricante de pisos de madeira que já forneceu matéria-prima para importantes projetos urbanísticos naquele país, como no Atlantic City Boardwalk, na Brooklyn Bridge e em obras no Central Park.

Muitos desses projetos utilizam ipê em sua composição. É o mesmo tipo de madeira que a Timber Holdings adquiriu da Ronardi em 2016, e que a Ronardi, por sua vez, também adquire da Bonardi da Amazônia.

Em resposta à Repórter Brasil, A Ronardi afirmou que “repudia veementemente qualquer transgressão à lei trabalhista”. A empresa diz ter pedido esclarecimentos à Bonardi da Amazônia após o contato da reportagem e reproduziu o comunicado do fornecedor, no qual a Bonardi afirma ter regularizado a situação dos trabalhadores e não ter mais débitos trabalhistas pendentes. (Leia o posicionamento completo da Ronardi).

Também contatada pela reportagem, a Timber Holdings afirmou, na primeira leva de respostas enviadas por email, que a empresa comprou dois contêineres com pisos de Ipê e com documentação de cadeia de fornecimento indicando conexão com a Bonardi de Amazônia Ltda. Posteriormente, porém, a empresa retificou essa informação. Em um segundo email à reportagem, a empresa afirmou que a madeira adquirida da Ronardi tinha origem em outras serrarias, que não a Bonardi.

“Nossa empresa é completamente contra qualquer tipo de trabalho escravo e comércio de madeira ilegal, e deve-se ressaltar que a Timber Holdings foi uma das primeiras empresas do mundo a investir em uma auditoria terceirizada para cada carregamento de madeira importado do Brasil”, diz a empresa. Segundo a importadora norte-americana, nenhum embarque de madeira é aprovado caso existam empregadores arrolados na “lista da transparência”  em qualquer etapa da rede de fornecedores do produto, desde a origem até o vendedor direto (Leia as repostas da Timber Holdings USA).

A realidade dos trabalhadores explorados por serrarias no Pará pouco mudou desde os casos flagrados em 2012. Em outubro do ano passado, a Repórter Brasil encontrou trabalhadores em condições degradantes muito parecidas com as registradas nas serrarias Iller e Bonardi durante fiscalização do Ministério do Trabalho no mesmo estado. Além de condições degradantes, muitos estavam sem receber pagamento e sofriam ameaças quando cobravam seus direitos. Saiba como vivem e morrem os homens que derrubam a Amazônia: “Trabalho escravo na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça”.

Reportagem parte do especial Profissão Madeireiro.

Fonte – André Campos, Repórter Brasil de 13 de março de 2017

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