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Nova lei pode ameaçar florestas, rios e cachoeiras típicos do Paraná

Cânion do Guartelá no Paraná. Ele é um dos trechos mais lindos da Escarpa Devoniana (Foto: Divulgaçao - Observatório de Justiça e Conservação)Cânion do Guartelá, no Paraná. Ele faz parte da Escarpa Devoniana (Foto: Divulgação – Observatório de Justiça e Conservação)

A Assembleia Legislativa do Paraná vai apreciar um projeto que reduz para um terço a área de proteção ambiental da Escarpa Devoniana, com 260 quilômetros de extensão

O estado do Paraná é cortado praticamente em toda a sua extensão por um gigantesco degrau. É uma formação geológica única. Uma escarpa de 260 quilômetros que separa o Primeiro e o Segundo Planaltos do Paraná. Com desfiladeiros, cânions de rios caudalosos e acidentados, cachoeiras e penhascos, a escarpa criou vários lugares de beleza ímpar, muitos deles transformados em atrações turísticas. Ela passa por 12 municípios do estado e engloba importantes sítios naturais, como o Buraco do Padre e o Cânion do Guartelá. Essa formação também tem valor ecológico por estar associada aos campos naturais e às florestas com araucárias, os dois biomas mais ameaçados do país. Agora, essa formação geológica e o ecossistema em torno dela correm perigo. No dia 13 de dezembro, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa do Paraná aprovou um parecer técnico sobre o Projeto de Lei nº 527/2016, que reduz para menos de um terço o perímetro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana. Para o geólogo Gilson Burigo Guimarães, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, essa lei seria um retrocesso para a conservação. “O projeto desfigura e inviabiliza a existência de uma unidade de conservação de uso sustentável”, diz em entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA – Por que a Escarpa Devoniana é tão sem igual no Brasil?
Gilson Burigo Guimarães – É sempre um grande desafio justificar por que algo é especial. Com frequência existe alguma carga de subjetividade. Mas, quando abordamos os chamados geossítios e os reconhecemos como um representante de alto valor da geodiversidade, passível de ser tratado como um patrimônio geológico, normalmente adotamos a proposta do autor britânico Murray Gray, que sugere a análise segundo seis grandes categorias de valor [as quais ainda incluem subcategorias]. Assim, fala-se de valor intrínseco, cultural, estético, econômico, funcional e científico-didático. E todas essas categorias de valor são aplicáveis à Escarpa Devoniana e aos Campos Gerais. A história geológica dessa região permitiu a origem de um relevo diferenciado, um amplo degrau topográfico [a escarpa] separando dois planaltos nitidamente diferentes. Isso afeta diretamente detalhes do relevo e da hidrografia, o clima, a vegetação ou a vocação de atividades econômicas.

ÉPOCA – Qual é o valor ecológico da escarpa?
Gilson – Trata-se de uma região de grande beleza natural, com paredões de rocha por vezes com mais de 200 metros de desnível, grande número de rios com corredeiras ou mesmo expressivas cachoeiras, além de vales profundos na forma de cânions. No “degrau de cima”, ou Segundo Planalto Paranaense, desenvolveu-se uma região de solos arenosos, vegetação campestre e águas abundantes, conhecida como Campos Gerais. Esse contexto de disponibilidade de água e alimento, mais a facilidade de deslocamento, facilitou uma rota comercial com tropas de mulas nos séculos XVIII e XIX, a Rota dos Tropeiros, do Rio Grande do Sul a São Paulo. Várias cidades e a própria identidade cultural da região se estruturaram a partir desse ciclo econômico. Essas mesmas condições controlaram a presença de condições ecológicas particulares, tanto para a flora [principalmente campos naturais, floresta com araucárias e cerrado], como para a fauna associada [aves diversas ou mamíferos como veados, lobo-guará, tamanduá-bandeira e suçuarana]. A posição estratégica da região e seus atrativos naturais e culturais têm alimentado uma interessante vocação turística. A área é considerada como prioritária para conservação pelo Ministério do Meio Ambiente. Por esse motivo, criou-se, em 2006, o Parque Nacional dos Campos Gerais, o qual se superpõe parcialmente a setores da APA da Escarpa Devoniana nos municípios de Ponta Grossa, Carambeí e Castro. Diversos serviços ambientais são executados pelos remanescentes de campos naturais [secos e úmidos] e cerrado, matas ripárias e floresta com araucária. A integridade dos espaços naturais também inibe a ampliação de processos erosivos e preserva os mananciais hídricos [superficiais e subterrâneos]. A existência de contextos muito particulares, como de furnas e outras cavidades subterrâneas, leva ao desenvolvimento de condições ecológicas especiais, com elevado potencial para a existência de espécies endêmicas. Inclusive já há registros de espécies troglóbias [animais que se especializaram para a vida exclusiva em cavernas] na APA da Escarpa Devoniana. Apesar de existirem outras unidades de conservação de proteção integral [por exemplo, parques estaduais de Vila Velha, do Guartelá e do Cerrado), ainda assim a APA tem um papel fundamental, pois permite a conectividade entre os diversos setores dos Campos Gerais.

ÉPOCA – Qual é o valor arqueológico da escarpa e da APA que a protege? 

Gilson – A região da Escarpa Devoniana e dos Campos Gerais é riquíssima em sítios arqueológicos, especialmente abrigos sob rocha, tanto com pinturas rupestres como material lítico, cerâmico e sepultamentos. A proteção de sítios arqueológicos, em princípio, é amparada por legislação federal. De modo concorrente, o zoneamento ecológico econômico destaca a presença desses sítios na APA da Escarpa Devoniana como elementos adicionais para justificar as medidas de proteção. A região funciona como verdadeiro laboratório ao ar livre, o que motiva grupos de estudantes de instituições do ensino básico ao superior, do Paraná ou mesmo de outros estados e do exterior, a visitarem-na assiduamente. Na lista de sítios geológicos e paleontológicos excepcionais do Brasil, nove se encontram no contexto da Escarpa Devoniana e dos Campos Gerais e há potencial para mais.

ÉPOCA – Quais são as ameaças à escarpa?
Gilson – A lentidão no processo de formalização da APA [criação em 1992, plano de manejo em 2004, Conselho Gestor em 2013], junto com uma fiscalização deficiente dos órgãos competentes, tem facilitado que diversas atividades econômicas em desacordo com o zoneamento ecológico econômico avancem sobre a unidade. Nos locais em que as restrições da natureza dos solos [espessura, nutrientes etc.] e da topografia não são severas, a agricultura mecanizada tem avançado, muitas vezes acompanhada pela drenagem de nascentes. Quando essa não encontra condições adequadas, é o plantio extensivo de madeira para as indústrias de papel e celulose que se estabelece. Mais recentemente a mineração tem assumido um papel de destaque como ameaça, em especial para obtenção de areia para a construção civil. Outros problemas são avanço de áreas urbanas e industriais, propostas de novos traçados rodoviários e instalação de aterros.

ÉPOCA –  É necessário proteger as características da escarpa, como a geologia e a vegetação, ao longo de toda a sua extensão?
Gilson – O plano de manejo e seu zoneamento ecológico econômico definem setores com diferentes graus de proteção, levando em conta os atributos da geodiversidade e da biodiversidade. Mas a conectividade de domínios ecológicos, reduzindo uma fragmentação que compromete a viabilidade ecológica de algumas espécies, deve sempre ser uma preocupação dos gestores da unidade. A APA da Escarpa Devoniana tem como substrato geológico dominante as rochas da Formação Furnas, que representa o principal aquífero de boa parte das cidades dos Campos Gerais. A manutenção de índices adequados de vazão, bem como de qualidade das águas, será mais viável com uma política integrada de atenção aplicada à região.

ÉPOCA – O que mudaria exatamente com o Projeto de Lei nº 527/2016?
Gilson – O projeto desfigura e inviabiliza a existência de uma unidade de conservação de uso sustentável. Caso ele seja aprovado, obrigatoriamente um novo plano de manejo precisará ser instituído. Com a expressiva redução da área e a remoção de setores com potencial agrícola, concentrando-se nas proximidades da crista da Escarpa Devoniana, a unidade assumiria um perfil mais adequado a uma unidade de conservação de proteção integral, tal como um parque estadual. Isso levaria obrigatoriamente à desapropriação de propriedades. Haveria também uma redução drástica nos valores de arrecadação de ICMS ecológico, impactando de forma diferenciada cada município com área abrangida pela nova configuração da APA. No mínimo o total global cairia para menos de um terço, já que essa é a redução de área prevista pelo projeto. Um grave efeito colateral da aprovação desse projeto será a consagração de um método ilegítimo, antidemocrático e desprovido de atenção com temas de ordem ambiental e cultural no tratamento das unidades de conservação do Paraná. Um prejuízo elevado aos paranaenses, principalmente em médio e longo prazo.

ÉPOCA – E qual seria o impacto ecológico na prática da lei?
Gilson – Algumas consequências imediatas é que várias atividades hoje proibidas ou limitadas pelo zoneamento ecológico econômico perderiam esse “freio”, intensificando a supressão de áreas com seus atributos naturais. Um domínio particularmente sensível são os campos naturais… Existe uma percepção incorreta de que, não sendo uma região de florestas, não merece proteção. Ou mesmo de que áreas com campos representam trechos com matas suprimidas. Indo além… Uma grande ameaça na região tem sido a introdução de plantio extensivo de pínus nos setores de relevo mais movimentado e/ou com afloramentos rochosos [especialmente junto à escarpa]. Além de afetar uma zona interessantíssima do ponto de vista ecológico [variedades rupícolas; serviços ambientais como a recarga de aquífero etc.] e cênico, traz a realidade da poluição vegetal, pois as sementes do pínus se disseminam com muita facilidade, pelo vento. Amplificando o comprometimento de áreas adjacentes. Não se trata de uma medida meramente burocrática. Ao reduzir significativamente a área, haverá a liberação de ações sem um controle ambiental e cultural mais rígido, em setores que, perante a lei, deveriam receber um tratamento especial. Os autores do projeto demonstram desconhecimento das questões básicas relativas ao enquadramento de uma unidade de conservação. Provavelmente não avaliaram detidamente que o novo recorte que estão propondo praticamente inviabiliza a existência de uma unidade de uso sustentável. Também podem achar que, com a necessidade de um novo plano de manejo, ajustado à nova dimensão da unidade, os setores que eles representam [agronegócio e silvicultura, principalmente] terão influência direta na definição das novas regras.

ÉPOCA – Qual é a chance realista desse projeto de lei ser aprovado?
Gilson – Esse projeto já teve um parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça [CCJ] no último dia 13 de dezembro. Mesmo tendo sido solicitados pareceres de diversos órgãos/instituições, essa comissão decidiu por apreciar a matéria antes de recebê-los. A Assembleia Legislativa está em recesso e o projeto só deverá voltar a tramitar em fevereiro de 2017. De acordo com um deputado que se opõe a esse projeto, ao menos outras três comissões deverão analisá-lo [Cultura; Ecologia e Meio Ambiente; Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural]. Ainda segundo ele, os proponentes prometeram que haverá uma rodada de audiências públicas para debater o projeto. Mesmo a CCJ já tendo definido seu parecer, ao menos o Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Ponta Grossa e o Ministério Público Estadual prepararam pareceres fortemente contrários ao projeto, apontando suas inconsistências e ilegalidades, enviando-as à Assembleia Legislativa. A outra estratégia tem sido buscar o apoio de diversos interlocutores da sociedade civil e organizada, além do preparo de textos de opinião, encaminhados à imprensa.

ÉPOCA – Qual é o interesse econômico a favor da manutenção da APA? Quem ganha com o uso sustentável dela hoje?
Gilson – Interesses econômicos atrelados a um sentido de justiça social e ambiental estão na base da proposta de manutenção da APA. Benefícios que se estendam a uma parcela mais ampla da sociedade e que não tenham uma visão imediatista. Diferentes modalidades de turismo [rural, ecológico, cultural, geoturismo] e práticas esportivas, junto com atividades agrícolas desenvolvidas em harmonia com a manutenção dos recursos naturais, tais como agricultura orgânica ou mesmo pecuária extensiva, são exemplos de empreendimentos em sintonia com as características dessa região especial. Também a possibilidade de que sistemas naturais possam continuar em operação, garantindo a manutenção de exemplares excepcionais da geodiversidade e biodiversidade brasileira e mesmo as próprias atividades econômicas.

Fonte – Alexandre Mansur, Blog do Planeta de 02 de janeiro de 2017

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