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O umami é um embromami?

A narrativa sobre o quinto gosto básico é sedutora. Por trás, os interesses de uma grande corporação em dar poderes mágicos para um pozinho branco. Foto: Live it Beautiful

Quando ouvi pela primeira vez falar em umami, tive aquela repetida sensação de “Caramba, como os ocidentais somos burros e pedantes”. Foi há uns quatro ou cinco anos, num desses programas televisivos com chefs badalados. Aquilo parecia incrível, de cair o queixo: o quinto gosto básico, catalogado pelos japoneses, fazia miséria dos outros quatro (salgado, doce, amargo e azedo).

Era uma promessa de explosão bucal. Um orgasmo gastronômico. Era como se todos os Ursinhos Carinhosos juntassem seus coraçõezinhos fofos no céu para criar uma chuva generosa de sabores sobre nossas cabeças.

Eu mal podia esperar para testar na prática. Bastava combinar os ingredientes certos. Parmesão e tomates maduros são duas belas fontes de umami, à falta da milagrosa alga kombu, umamista por natureza. Misturados, e à temperatura certa, uma delícia. Mas, bom, continuam sendo apenas tomate e parmesão. Eu talvez devesse me esforçar mais para chegar lá. Afinal, os japoneses levaram milênios nessa pesquisa.

Outubro de 2017. Hotel Sheraton, centro de Buenos Aires. A palestra “Essência do washoku. Umami é o gosto básico para uma melhor nutrição?” era uma promessa de dar uma turbinada nos conhecimentos. Os pesquisadores vindos do Japão e da Europa especialmente para o Congresso Internacional de Nutrição poderiam oferecer uma boa perspectiva. E o título do encontro, em forma de pergunta, dava ainda a entender que contrapontos seriam elencados.

O evento promovido oficialmente pela Jumonji University naquela manhã passou a uma trilha repetida, que eu já havia visto algumas outras vezes durante palestras no Brasil. Mas foi um bocado além na extrapolação do raciocínio. O washoku é um braço lindo da culinária japonesa: ingredientes frescos e variados, muita ênfase em vegetais e peixes, cores vibrantes, pratos a serem degustados calmamente e em companhia.

A obesidade no Japão é de apenas 3,4%, segundo os pesquisadores, uma das mais baixas num mundo cada vez mais assustado com os problemas associados à alimentação. A expectativa de vida é alta. A hipertensão é baixa. Por que isso acontece? Por que os japoneses não se renderam a produtos com altos teores de sal, gordura e açúcar? A hipótese dos pesquisadores ali reunidos, sem discordâncias, é de que o umami os levou ao sucesso.

Não exatamente o umami, mas um disfarcinho de umami. Lá pelas tantas, um dos palestrantes agradeceu a Ajinomoto pelo convite para a palestra. Como dissemos antes, o encontro fora oficialmente organizado por uma universidade, condição para que pudesse constar da programação científica do Congresso Internacional.

Mas, àquela altura, já estava claro que se tratava de uma ação publicitário-científica da corporação japonesa, que domina de braçada o mercado de glutamato monossódico, estimado em 2015 em US$ 9 bilhões apenas em vendas no varejo, sem contabilizar o uso por fabricantes. A revelação feita pelo palestrante não era de causar espanto, também, porque essa mistura entre ciência e marketing é bem comum em eventos da área de saúde.

Ao todo, o umami foi assunto para cinco debates durante o congresso na Argentina, muitos deles ocultos sob outros nomes, em um peso claramente desproporcional diante dos enormes problemas que assolam o mundo da nutrição.

No simpósio sobre washoku, o umami foi apresentado como a panaceia. Ou melhor, o glutamato monossódico, vulgo Ajinomoto. Sim, há uma trilha rápida se você é ocidental e não pode esperar centenas de anos para chegar ao nirvana do rango: coloca um pouquinho de Ajinomoto na comida e, supostamente, tudo virá à luz. Segundo os pesquisadores, um consumo adequado desse aminoácido melhora a digestão e a microbiota intestinal, evita a desnutrição, faz idosos saírem caminhando como jovens. E, claro, melhora a saciedade, evitando que as pessoas engordem. Bingo! Por isso os japoneses estão tão bem.

O tomate é uma das promessas de se obter um sabor umami. Mas, afinal, é apenas tomate. Foto: Tânia Rêgo. Arquivo Agência Brasil

Se nós olharmos um pouco mais nessa hora para as estratégias de marketing, ficará fácil entender o que ocorreu. O que é o Ajinomoto? Um pozinho branco. Um sal aditivado (embora tecnicamente não seja bem um sal). Enfim, algo sem graça. Mas, oras, não existem histórias sem graça em nosso admirável século. Uma marca não é só um produto. É um estilo de vida, uma narrativa, uma inspiração, um convite ao amor entre os humanos.

E foi assim que a Ajinomoto decidiu fazer do umami não um elemento a mais dessa história, mas o centro. O umami não nasceu com a Ajinomoto, mas foi sendo ressignificado por ela. Hoje, as duas coisas se confundem, e a Ajinomoto anuncia ter começado a vender o umami no começo do século passado.

“O conceito foi desenvolvido na empresa realmente cedo porque sabíamos que o umami existia, mas não acreditavam nisso. O único jeito de provar foi financiar pesquisas que impulsionaram conhecimento”, nos disse Ana San Gabriel, gerente geral de Comunicação do Grupo Científico da Ajinomoto.

É mais ou menos isso. Ou mais pra menos. Uma parte dessa história você pode encontrar nas próprias publicações da Ajinomoto, então, vamos falar rapidinho. Em 1908 um cientista japonês conseguiu sintetizar o umami a partir de algas com altos teores de glutamato. No ano seguinte a empresa já estava aberta, e logo em seguida já exportava o produto, que logo começou a ser enviado aos Estados Unidos.

Tudo tranquilo, até a década de 1960, quando um pesquisador escreveu um artigo descrevendo como se sentia após ir a restaurantes chineses: fraqueza, suor, dor de cabeça, tontura. Ele associou os sintomas ao uso abundante de glutamato nessa culinária. O caso se alastrou, outras pessoas relataram os mesmos efeitos, e logo o fenômeno ganhou o apelido de Síndrome do Restaurante Chinês.

O glutamato não era um grande conhecido do público em geral, mas já era um aditivo largamente utilizado pela indústria de alimentos, em especial no emergente mercado de ultraprocessados, justamente para restaurar o sabor perdido na fabricação.

Um parêntese. Lembra da associação entre glutamato e magreza? Uma das acusações contra o glutamato é de que se trata de um componente fundamental para criar alimentos hiperpalatáveis, ou seja, que criam uma sensação de dependência que torna difícil parar de consumi-lo. O contrário da magreza.

De volta à década de 1960, a Síndrome do Restaurante Chinês poderia fazer a Ajinomoto perder o boom dos ultraprocessados. Em 1970, o Codex Alimentarius, que regulamenta o uso de ingredientes alimentares em nível global, proibiu o uso em produtos para menores de doze meses e limitou a ingestão diária aceitável a 120 mg por quilo de peso corpóreo para todos os demais.

A reação foi imediata. A corporação japonesa criou o Comitê Técnico Internacional do Glutamato, um centro para financiar pesquisas científicas sobre o ingrediente na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia. Três anos depois, parte das restrições já havia caído por terra. Em 1978 foi feito um grande simpósio na Itália do qual resultou um livro. Em 1987 não havia mais restrições de uso, situação que se mantém.

Foi na década de 1980 que se delineou a estratégia para fazer o umami ser reconhecido como gosto básico. Os louros da vitória vieram logo após mais um simpósio na Itália, com a publicação de um artigo por um grupo da Universidade da Califórnia. O responsável foi Charles Zuker, que curiosamente poucos meses antes criou a Senomyx, uma empresa voltada à melhoria do sabor dos ultraprocessados.

Parmesão é gostoso em qualquer situação. Saber que ele é “alto em umami” não tem muita serventia. Foto: Pexels.com

O foco da Senomyx é justamente garantir a substituição de ingredientes considerados problemáticos. É claro que a Ajinomoto está entre os clientes. Curioso é que, segundo a página da própria empresa, uma das missões no momento é encontrar uma alternativa viável ao glutamato. Nestlé, Sopas Campbell e Coca-Cola completam a lista.

No primeiro semestre de 2017, a Senomyx registrou receitas de US$ 5,5 milhões. Como se vê, não é uma acionista majoritária do umami business, mas tem sua fatia.

Fato é que o glutamato é uma substância altamente estudada. O número de artigos foi do nada na década de 1960 para 50 ao ano na década de 1990 e 150 ao ano nesse século. Os números continuam em alta.

“Não podemos fazer mais do que fizemos. Sabemos que não é verdade, mas existe um problema de reputação e informação infundada sendo difundida. Provavelmente temos de fazer um esforço maior para nos comunicarmos com as pessoas de maneira a assegurar que o glutamato é seguro”, admite Ana San Gabriel.

A substância continua envolta em controvérsias. Há uma associação com problemas respiratórios e do sistema nervoso. Os defensores do glutamato alegam que qualquer dano só seria provocado em caso de um consumo absurdamente grande ou em um corpo fragilizado. Há os que admitam “casos sensíveis” especialmente em recém-nascidos porque o glutamato poderia provocar danos ao sistema nervoso caso ultrapassasse uma barreira no cérebro.

O livro Umami e Glutamato. Aspectos químicos, biológicos e tecnológicos, que você pode encontrar em sebos, ajuda a reforçar essa narrativa complexa. O trabalho foi financiado pelo Instituto para a Ciência do Glutamato na América Latina, por sua vez ligado ao comitê internacional, por sua vez ligado à Ajinomoto. A ideia clara foi tentar reunir evidências científicas favoráveis ao Ajinomoto para convencer pesquisadores da região sobre a inocuidade do aminoácido.

A obra foi coordenada por Felix Guillermo Reyes, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Ele foi recrutado justamente numa reunião do Codex em que se discutia a segurança do glutamato. “O glutamato era um simples realçador desse sabor até o início desse século. Hoje é uma das moléculas responsáveis pelo quinto gosto básico. Esse conhecimento foi gerado graças a muitas das pesquisas financiadas pela indústria”, enfatizou, quando conversamos pessoalmente.

Reyes compara o comitê sobre o glutamato ao International Life Sciences Institute (ILSI), criado na década de 1970 nos Estados Unidos pela Coca. O professor foi um dos criadores do braço brasileiro do ILSI, que hoje amealha quase 40 empresas de ultraprocessados e biotecnologia. Já mostramos aqui no Joio como o grupo hoje busca influenciar a agenda regulatória em favor dos patrocinadores, inclusive na Anvisa.

Além dos professores, a Ajinomoto financia pesquisas de mestrado e doutorado, e entrega prêmios científicos. A plataforma Lattes registra mais de dois mil currículos com menções ao glutamato; Ajinomoto, em 150.

Uma das prioridades claras do momento é impulsionar o glutamato como substituto do sal. Afinal, os problemas com hipertensão ocupam um espaço central na agenda de saúde pública, e o cloreto de sódio está sob os holofotes.

Tudo isso ganha uma dimensão bem lucrativa quando cruza o mundo da alta gastronomia, tão de moda em vários países. No Brasil, páginas mantidas pela Ajinomoto (sem menções claras à empresa) promovem receitas abundantes em umami. Muitas vezes o material valoriza ingredientes naturalmente ricos em umami, mas em outras apela ao formato sintético. No ano passado, essas páginas convidaram chefs badalados para criar receitas porretas em umami. No aeroporto de Congonhas você pode comer a tapioca Saigon Umami, que o chef Guga Rocha fez sob encomenda.

Na Inglaterra, em 2014, o Daily Mail registrava uma febre por umami graças ao endosso de Jamie Oliver e Nigel Slater. A demanda por formas sintéticas em tubinhos e pós havia subido 25% em um ano.

“Eu entendo que você pode ver um conflito ético (no financiamento de pesquisas), mas a única coisa em que interferimos é na escolha dos tópicos”, defende Ana San Gabriel. “Temos nossas prioridades, que agora são aminoácidos e temperos, mas, uma vez que o pesquisador recebe o dinheiro, ele pode conduzir a pesquisa como quiser e publicar os resultados.”

Financial Times informava em 2015 que a Ajinomoto esperava crescer 4% ao ano na base dessa troca com o sal. Pouco antes, Felix Reyes deu uma entrevista de página inteira no jornal O Globo na qual também defendia a substituição. E dizia que os efeitos nocivos em torno da substância são apenas mitos infundados.

No ano passado, ele e parceiras de pesquisa publicaram um artigo científico no qual elencam as principais oportunidades para engenheiros de alimentos aplicarem o glutamato em substituição ao cloreto de sódio.

Na Faculdade de Saúde Pública da USP, Elizabeth Torres é uma das pessoas que orientaram teses financiadas pela Ajinomoto, até que a unidade proibisse esse tipo de relação público-privado. “Não vejo como um problema. Há colegas que têm problemas sérios de relacionamento com a indústria”, queixou-se. Ela atribuiu as melhores condições materiais da vizinha Faculdade de Medicina a um bom ambiente para as empresas, inclusive a indústria farmacêutica. “É uma bobagem. É uma tonteria. A gente precisa da indústria de alimentos. Não tem como alimentar 7,5 bilhões de pessoas fazendo comida em casa, comida de verdade.”

Mas, afinal, para que serve saber sobre o umami? Foi algo que eu me perguntei e perguntei a outras pessoas durante meses. Se formos olhar de maneira geral, o umami serve como narrativa publicitária. Mas há casos pontuais. Tanto conhecimento acumulado sobre substâncias com elevado potencial de sabor pode ser importante para desenvolver combinações para alimentar idosos e pessoas com o paladar reduzido por tratamento contra o câncer, por exemplo. Para isso, porém, você não precisa de um pó mágico.

Fonte – João Peres, O Joio e o Trigo de 26 de fevereiro de 2018

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