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Os responsáveis pelo pato

Trocando em miúdos, internalizar externalidades significa responsabilizar os causadores do problema. “Significa que, em vez de todo mundo pagar o pato, que pague o pato quem é responsável por ele”, explica, didaticamente, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Eduardo Frickmann Young, um estudioso da Economia do Meio Ambiente. Mas, se a teoria parece fácil, a prática depara-se com questões que fogem à técnica e dependem da política. Para ele, falta interesse em precificar os custos socioambientais, pois os projetos ficariam menos atraentes e com menor visibilidade.

Young dá como exemplo a crise hídrica. “Se as externalidades envolvidas na questão da gestão da água fossem incorporadas pelos governos estadual e municipais de São Paulo, o estado paulista estaria vivendo sob esse caos hídrico de hoje? Não. Porque não dá uma visibilidade tão grande investir em eficiência de sistema e em serviço ambiental, incluindo o reflorestamento das matas ciliares”, afirma.

Defensor do crescimento econômico, Young vê na inovação e na sociedade do conhecimento o caminho da economia verde – que não vencerá o jogo sozinha, precisa ser estimulada por políticas específicas.

Internalizar as externalidades no preço dos produtos pesaria sobre os mais pobres, tornando os produtos e serviços mais inacessíveis a quem tem menor poder aquisitivo? E que impactos teria na inflação?

A externalidade não é um custo inventado, ela está aí, ela existe. Não é o economista que inventa a externalidade, ele apenas a enxerga. A poluição, a falta d’água, o esgoto, as consequências da mudança climática, o câncer estão aí. Isso para falar das externalidades negativas, depois podemos falar das positivas, como os serviços ambientais. Em Economia Ambiental, o “desserviço ambiental” é a externalidade negativa. Então, quando falamos em medir a externalidade, estabelecendo como métrica um preço de mercado, estou simplesmente vendo um problema e vou comparar com outro problema.

A mensuração da externalidade é uma tentativa de estabelecer um grau de relevância dessa perda com outros valores econômicos. E para isso a gente faz a valoração. Uma besteira, desculpe o termo, é dizer que, com a valoração, se faz uma “commoditização” da natureza, vamos transformar a natureza em um grande mercado que vai excluir os pobres. Balela. Nunca li um texto conceituado que mostrasse isso. A teoria diz: valoração da externalidade diz respeito a medir a importância dessa perda. Porque, se esse custo existe, alguém está pagando. Quem paga as externalidades do problema da mobilidade, pegando ônibus lotado em um superengarrafamento, não é a pessoa que está usufruindo do ar condicionado no seu automóvel. Uma colega sua, de um grande jornal de São Paulo, disse que, se houvesse um transporte público de qualidade que oferecesse o mesmo grau de conforto do carro, deixaria de usá-lo. Óbvio: não existe transporte público que dê o mesmo grau de conforto do individual. Eu não conheço. Em qualquer lugar do mundo, você tem de andar, pegar fila, vai estar cheio na hora do rush… por isso preciso penalizar o transporte individual, para criar um benefício para quem usa o público. Quem sofre as consequências das emissões, da mudança do clima, usualmente contribui muito pouco para esse problema.

Essa, inclusive, é uma definição de externalidade, certo?

Essa é “a” definição. Externalidade negativa significa que o custo é socializado, é pago por outros. A externalidade não é paga com a internalização. O que se faz com a internalização é responsabilizar o causador do problema. Internalizar externalidades significa que, em vez de todo mundo pagar o pato, que pague o pato quem é responsável por ele.

Se existe uma externalidade que afeta um determinado espaço, como o geográfico, que afeta uma área da cidade, a externalidade está embutida no custo daquela área. Esse custo será internalizado por quem vive na região. Quem puder evitar esse custo o fará. A sociedade faz com que haja uma maior procura pela área sem externalidades negativas e uma menor procura pelas áreas com. Em uma sociedade na qual a distribuição de renda não é homogênea, o indivíduo com maior disposição a pagar optará por uma área com menos problema de mobilidade, poluição etc. Ou seja, as externalidades estão embutidas no valor dos imóveis, no valor de aluguéis de áreas como a Zona Sul do Rio.

A presença da externalidade deprecia os espaços sociais. Um imóvel localizado próximo a um lixão custará bem menos que outro idêntico, mas localizado longe do lixão. A sociedade, de um jeito ou de outro, já precificou isso.

Ou seja, a precificação já está acontecendo e prejudicando os mais pobres?

Pergunte a quem gasta 4 a 5 horas por dia no transporte, ou vive próximo a um lixão, ou perto do barulho dos aviões.

Mas, voltando à pergunta inicial, se a gente calcula o valor da pegada hídrica, por exemplo, e embute esse valor no preço dos produtos, estes ficariam ainda mais inacessíveis para os mais pobres, e isso não reforçaria a desigualdade?

Não, ao contrário. Se eu estabeleço, por exemplo, uma restrição fiscal ao uso individual do automóvel por pedágio urbano, aumento do IPVA e criação de taxa específica, eu penalizo o usuário do automóvel. Contudo, o beneficiário dessa medida seria toda a população que se move.

Mas vamos tomar como exemplo um produto que seja usado por todos, como a água, pois não é todo mundo que tem automóvel.

O automóvel é de poucos, mas a mobilidade é de todos. Mas. o.k., voltando ao exemplo da água. Se faço um sistema de cobrança pelo uso de água, é verdade que as pessoas pagarão mais pela água. Contudo, haverá uma racionalização desse uso, com menor desperdício, tornando o uso, do ponto de vista econômico, melhor. Os grandes desperdiçadores deixarão de desperdiçar. Uma pessoa que tem possibilidade de racionar vai fazê-lo. Isso considerando que a falta de água é um problema. Aí entra a hipocrisia da história. Usa-se o argumento de que haverá um perdedor para justificar a não cobrança, com isso o grande usuário fica isento disso. Busca, então, a desculpa social de que o mais pobre terá de pagar mais caro.

Vamos pensar no sistema de água como um todo, não apenas o abastecimento, mas também o saneamento, na hipótese de haver uma cobrança adequada pelo uso da água que incluísse a disposição dessa água. As pessoas pensam na água até a torneira, mas não depois que dão a descarga. Então, é preciso pensar em uma cobrança integrada.

A água contaminada pelo esgoto, até chegar no mar, passa por áreas em que vivem as comunidades pobres. Quanto mais suja for a área, mais desvalorizada será e mais pobre será o residente que aceita morar lá. A poluição é regressiva, ou seja, quem paga mais são os mais pobres. Se houver uma cobrança que melhore a qualidade da água, quem vai se beneficiar é quem está recebendo (sofrendo) a externalidade.

Precificar as externalidades, ao encarecer a economia marrom, fará com que a economia verde se torne relativamente mais barata?

A primeira expressão da precificação é a medição, que é um avanço, mas não é suficiente: conhecer o problema não o resolve, apenas facilita que soluções sejam criadas. A segunda possibilidade é, de fato, a internalização da externalidade: eu estabeleço uma cobrança sobre o dano que foi gerado, ou seja, cobro o responsável por isso. O que percebo é que, sob o argumento falacioso de que internalizar a externalidade penaliza o pobre, acabo criando uma justificativa para manutenção do status quo, em que a perda para o mais pobre é mais alta pela externalidade gerada que a eventual perda privada que ele terá, pelo preço mais alto daquilo que vai consumir.

Alguém pode argumentar que, se eu considerar a internalização das externalidades, a estrutura de preços seria diferente. Não estou preocupado com a inflação propriamente dita. Se todos os preços sobem à mesma taxa e se o meu rendimento cresce à mesma velocidade com que crescem os custos, eu fico igual, só muda o numerário, a quantidade de zeros que eu vou botar na conta. O problema são os preços relativos, os preços de um produto em relação ao outro. É disso que a gente está falando.

Quando elevo o preço do combustível, eu penalizo o consumidor do combustível do automóvel – e também quem produz o automóvel. Mas, se essa medida é eficaz para reduzir o uso do transporte que não de massa, eu terei um benefício de ganho de mobilidade. Se o benefício da redução de gases poluentes atmosféricos, do tempo de deslocamento e do índice de congestionamento superar o custo privado do consumidor de combustível e do produtor de automóvel, essa política é ótima – o benefício coletivo torna-se superior à perda individual.

Desde que a gente consiga medir esse benefício coletivo, para não ficar abstrato.

A valoração existe há 50 anos, no mínimo. Não há nada novo nisso. O Banco Mundial já lidava com essa história nos anos 1980.

Em que estágio estamos nessas pesquisas? Avançaram significativamente?

No mundo, sim; no Brasil avançaram muito pouco. Por quê? Porque há pouca demanda. Não há interesse em medir externalidades, porque isso tornaria essas atividades menos atraentes. Caso se tornassem menos interessantes, os projetos alternativos ficariam mais atrativos. Vou pegar o caso do PAC. Houve interesse em medir as externalidades associadas aos grandes projetos de infraestrutura? Não. Infelizmente nós vivemos em um regime político em que o poder se apresenta de uma maneira independente da questão técnica. Se as externalidades envolvidas na questão da gestão da água fossem incorporadas pelos governos estadual e municipais de São Paulo, o estado paulista estaria vivendo sob esse caos hídrico de hoje? Não. Porque não dá uma visibilidade tão grande investir em eficiência de sistema e em serviço ambiental, incluindo o reflorestamento das matas ciliares.

Não sou cientista político, não tenho dados, mas é comum nas discussões sobre financiamento de campanhas políticas atribuir um grande peso às contribuições das construtoras. Se o seu objetivo é maximizar receitas de campanhas políticas, é muito melhor que você faça grandes obras que tornem esse seu projeto atraente, para que essas empresas ligadas às grandes obras financiem você.

O pagamento por serviço ambiental de pequenos produtores rurais não vai dar o mesmo retorno. Isso faz parte da agenda política em todos os níveis da administração pública brasileira. Se não há interesse em resolver o problema, não há interesse em medir o problema. Daí a falta de interesse na valoração das externalidades.

Em outros países onde os estudos se encontram mais avançados, não tem esse mesmo problema do interesse?

Em todos os países do mundo há problemas de interesse, contudo o grau é menor. Onde as técnicas de valoração são mais empregadas é justamente onde há sistemas de internalização das externalidades. Se vou estabelecer um sistema de pedágio urbano, como existe em Londres, eu preciso precificar essa cobrança. Onde existe, de fato, um mercado de carbono, como na União Europeia, eu preciso dar um preço à tonelada de carbono. Existe uma necessidade de estimar o benefício da política para estabelecer o valor da cobrança, como a do uso da água ou como a cobrança pela disposição do resíduo sólido. Em outros casos, aconteceu um vazamento de petróleo, eu preciso estipular o valor da indenização a ser paga pelo responsável. E, principalmente, na análise de projetos como ampliação de um aeroporto, uma rodovia. Isso é praxe nos países desenvolvidos. Não existe a ingenuidade de que isso vai resolver o problema político, mas colabora na tomada de decisão para que a sociedade decida o que é melhor para ela como um todo e não apenas para os indivíduos.

O Brasil reúne base de dados suficiente para fazer estudos de valoração ambiental? A falta de dados impede avanços maiores em pesquisas, estudos?

Não tem interesse para isso. Por que o orçamento da área ambiental é minguante em relação às outras? Por que não temos um sistema efetivo de cobrança pelo uso da água? Porque não interessa à sociedade como um todo ou não interessa aos agentes públicos? Aí você terá de entrar em uma discussão que não é minha especialidade, que é a Ciência Política. Por que tivemos uma operação da lei florestal contrária às pesquisas de opinião nitidamente para desenvolver o agronegócio, ignorando as suas externalidades? Por que os agentes públicos não agem necessariamente em prol dos interesses coletivos e sim de lados específicos? São questões para os cientistas políticos. Por que temos esse problema de representação torta no Congresso Nacional? Por que o tema ambiental aparece com muito mais importância nos debates em geral da população e ao mesmo tempo é tão sub-representado pelo corpo legislativo brasileiro e no próprio Executivo? E aqui a minha medida é o orçamento, que tem uma participação relativa declinante nos gastos públicos. E por que a sociedade permite isso? Eu tenho intuições, mas não sou a pessoa certa para responder a essas perguntas.

E além disso existe um pensamento econômico mainstream que não considera a economia com um subsistema do meio ambiente? Esse seria um outro fator?

O que você chama de pensamento econômico? O pensamento dos economistas ou o dos que tomam decisões ligadas à economia?

Os dois.

Mas são coisas diferentes. O economista não decide a economia. O economista não manda em nada.

Não manda, mas na nossa área, por exemplo, existem pouquíssimos economistas que falam sobre sustentabilidade, é até difícil o jornalista encontrar fontes. Na maioria das vezes, o conhecimento econômico é gerado como se não houvesse uma questão ambiental acima de tudo.

Não é porque as pessoas não assistiram à minha aula ou não leram o que escrevi – digo isso como um dos economistas que falam sobre sustentabilidade – que vão tomar a decisão que tomaram. Elas vão continuar tomando a mesma decisão, porque não levam isso em consideração. A sociedade opta por ter um carro mais barato. Eu não vi nenhuma manifestação pública ou protesto contra a redução do IPI do automóvel, vocês viram?

Não, só no meio ambiental mesmo é que houve críticas.

Os economistas que eu conheço que lidam com a questão ambiental são contra a redução do IPI para o automóvel e o subsídio à gasolina. Eu não conheço um único que seja favorável, e isso não impediu que a medida fosse tomada por razões inclusive eleitorais. Mas não é por causa do “pensamento econômico”. Na verdade, não existe “o“ pensamento econômico, a Economia é um campo de debate de ideias. Isso é outra grande balela, as pessoas dizem que é preciso ter uma “mudança de paradigma”, que “têm de deixar de ser consumistas”. Tá, então muda as pessoas. Se as pessoas não fossem tão consumistas, os shoppings estariam menos cheios, é verdade. Mas existe muita gente falando besteira em nome da Economia do Meio Ambiente, a começar da ideia de PIB, totalmente equivocada.

O maior equívoco é achar que a economia verde vai reduzir o PIB. PIB não é problema, PIB é solução. Quanto mais PIB, melhor, pode escrever aí. Nós só resolveremos problemas de sustentabilidade com aumento do PIB, ponto-final. Porque eu sei que aumento do PIB, Produto Interno Bruto, significa aumento da atividade econômica. Como eu aumento a atividade econômica? Com mais emprego e com mais produtividade. Eu quero pleno emprego e quero aumento da produtividade. Mas quero um aumento de produtividade que resulte na maior geração de valor pelo menor uso de recurso, uma economia cada vez mais desmaterializada, que é a economia do conhecimento, da inovação. Eu quero que o PIB aumente e não diminua.

Entra na questão da qualidade do PIB?

Exatamente, o PIB não deve ser maior apenas, precisa ser melhor.

E como é que se ganha esse debate na sociedade?

Mostrando que o caminho da economia verde gera mais renda e melhor emprego que o caminho da economia marrom. Inclusive tenho um trabalho sobre isso (leia artigo)

Seria mostrando as externalidades positivas da economia verde, em vez de só mostrar as negativas da economia marrom?

Exatamente. Se eu considerar as consequências negativas do caminho predatório e mostrar as possibilidades de empregabilidade do caminho alternativo de uma economia cada vez mais baseada em conhecimento e cada vez menos em extração predatória de recursos naturais, mais atividades vou gerar. Vou gerar mais empregos e de melhor qualidade. E, segundo a minha conta, fazendo uma simulação para a economia brasileira, isso bate.

A economia verde gera melhor PIB. E gera mais PIB através da inovação. A economia verde é aquela que incorpora o conhecimento e os serviços na atividade econômica. O que gera mais emprego? Ocupar predatoriamente o espaço urbano em um modelo de habitação permitindo que se construa casas de qualquer jeito nas encostas, ou um grande plano nacional de recuperação e reconstrução da cidade, com estrutura adequada e saneamento? Se eu for reconstruir a cidade, vou gerar emprego pra caramba e uma externalidade melhor.

O que gera mais emprego? Uma agricultura predatória com maior uso possível de área e de agrotóxicos, altamente mecanizada, ou uma agricultura na qual a mão de obra volta a ser valorizada, com maior intensidade de trabalho? Ah, o produto orgânico é mais caro. Claro, ele tem maior valor agregado, ele adiciona mais no processo. Ele adiciona externalidade positiva.

O caso da indústria: vamos nos especializar em commodities intensivas em emissão, ou em produtos intensivos em tecnologia e mão de obra? A Europa não quer produzir qualquer coisa, ela manda pra China. Isso não tornou a economia europeia menos industrializada. O PIB não está caindo por isso.

E o papel do poder público nisso?

Economia verde, na minha opinião, é um caminho alternativo, uma possibilidade que não vai acontecer espontaneamente. Ela precisa ser induzida, precisa de políticas específicas, incluindo a internalização das externalidades, que levem a uma produção econômica com maior agregação de valor através da incorporação da inovação e do conhecimento no processo produtivo. Produtos que não serão os mais baratos, mas serão melhores.

Carlos Eduardo Frickmann Young é professor associado do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento na linha que contempla biodiversidade, recursos naturais e culturais. Publicou diversos trabalhos sobre comércio e meio ambiente, economia do desmatamento e valoração de recursos naturais.

Fonte – Amália Safatle e Magali Cabral, Página 22 de 01 de setembro de 2014

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