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Parece, mas não é

Empresários, pesquisadores e governos buscam formas de trazer à luz as externalidades – reflexos negativos ou positivos de uma atividade que são sentidos por aqueles que pouco ou nada contribuíram para gerá-los. Precificá-las significa mostrar a economia em seu tamanho mais real

Quanto custariam a televisão, o tênis e o carro que compramos se neles estivessem contados todos os custos que implicam, e não só o que seus fabricantes gastaram? Se a construção de condomínios fechados elimina o comércio de rua e inibe a circulação de pedestres de uma cidade, por que esse impacto negativo não aparece no preço dos apartamentos? Se uma multinacional do agronegócio exporta, com sua soja, nutrientes do solo e quantidades cavalares de água, por que ela não tem de pagar por isso?

Essas perguntas têm ganhado espaço cada vez maior. Com a crise ambiental e seus efeitos para a sociedade, empresários, pesquisadores e governos buscam formas de incorporar aos preços as chamadas externalidades, que até hoje permanecem à margem da precificação. Para isso, é necessário não apenas mobilizar as ferramentas da ciência e da economia, mas também mudar o vocabulário e o modo de encarar a natureza.

Diversas organizações já se adiantam para ocupar um espaço nesse novo mundo. Companhias como a britânica Trucost oferecem a grandes e pequenas corporações uma base de dados com a qual podem estimar seu impacto sobre a natureza; no Brasil, a Bolsa Verde do Rio de Janeiro (BVRio) abre espaço para negociação de créditos ambientais. A empresa Biofílica, de São Paulo, comercializa serviços ambientais (Designam o fluxo de benefícios que o capital natural fornece ao ser humano), com vistas à conservação de florestas.

Porém as tentativas de calcular os custos escondidos resultam em números assustadores. Uma equipe liderada pelo economista australiano Robert Costanza, da Australian National University, estimou que a superexploração dos recursos naturais já causou uma perda nos serviços ambientais de US$ 20,2 trilhões, entre 1997 e 2011. Essa mesma pesquisa estima em US$ 124,8 trilhões por ano o valor de tudo que a natureza oferece sem cobrar ao ser humano, o que corresponde, aproximadamente, ao dobro do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, ou seja: a dádiva da Terra para nós é cada vez menor, e a culpa é nossa [Leia mais].

“Nossas estimativas econômicas deixam de fora os presentes da natureza que, hoje, valem mais do que todo o capital instalado e toda a atividade econômica no mundo. É um erro enorme”, afirma Costanza. “Não queremos transacionar, vender ou privatizar esses ativos, mas temos de reconhecer seu valor e começar a tomar medidas urgentes para protegê-los e restaurá-los.”

O esforço de ampliar a contabilidade de custos para além do que aparece no business as usual está enriquecendo a linguagem de tomadores de decisão com termos como serviços ambientais e capital natural (É o cálculo do valor monetário de toda a terra, água, ar e biodiversidade do planeta). Se o ar, os rios, os nutrientes da terra e o subsolo são insumos de toda produção e a condição da vida, então o planeta pode ser encarado como um gigantesco estoque de capital.

Outra expressão que a cada dia se populariza é a pegada ecológica, pela qual se busca medir o quanto uma atividade, uma empresa, um país ou mesmo uma pessoa geram de impacto no meio ambiente. A Global Footprint Network, uma ONG sediada na Califórnia (EUA), desenvolve, desde 2003, metodologias que buscam aperfeiçoar a contabilização do impacto humano sobre o planeta [Para saber mais, acesse].

Anualmente, a ONG celebra o Earth Overshoot Day, dia em que o uso dos recursos naturais pela atividade humana ultrapassa a capacidade de renovação do planeta, e que vem recuando a cada ano. Em 2012, esse dia foi 22 de agosto. Em 2013, dia 20 de agosto e, este ano, dia 19. Dessa marca até 31 de dezembro, a humanidade consome além das possibilidades do planeta, hipotecando o futuro.

A análise da pegada ecológica toma, como base de cálculo, o capital ecológico definido como “estoque de ativos ecológicos vivos que fornecem bens e serviços continuamente”, ou seja, a produção de recursos (como cereais e animais de criação), a assimilação de rejeitos (como a absorção de CO2), e serviços necessários para a sobrevivência (como a proteção contra raios ultravioleta, biodiversidade, limpeza da água e estabilidade do clima).

A partir de 2008, o Ministério do Meio Ambiente alemão, a Comissão Europeia e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) desenvolveram o The Economics of Ecosystems and Biodiversity (Em português: A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade), ou apenas Relatório Teeb.

O documento se propõe a ser “uma grande iniciativa internacional para chamar atenção para os benefícios econômicos globais da biodiversidade, expressar os custos crescentes da degradação dos ecossistemas, e para aproximar conhecimentos de ciência, economia e políticas públicas, permitindo o avanço de ações práticas”. A versão brasileira do relatório foi lançada este ano.

Críticas à monetização

Entretanto, a ideia de tratar a natureza inteira como ativo ou patrimônio, no sentido mais estritamente financeiro do termo, tem estimulado também uma série de críticas acerbas, cujo principal argumento é que se está aplicando à salvação do planeta a mesma lógica e a mesma linguagem que conduziram à sua destruição.

Pesquisadores como a alemã Barbara Unmüßig, da Fundação Heinrich Böll, alertam para a troca de conceitos como “bem coletivo” e “responsabilidade social” por um idioma centrado em dinheiro e capital.

Recentemente, o jornalista inglês George Monbiot, em discurso na Universidade de Sheffield, no Reino Unido, resumiu esses argumentos, afirmando que a lógica do capital natural “é plausível e respeitável, mas é a via para a ruína, uma ruína ainda maior do que a atual”. Para Monbiot, além de “empurrar o mundo natural ainda mais para o fundo do sistema que o está devorando vivo”, a noção de capital natural produz a ilusão de que algumas grandezas são comensuráveis, quando não são: a beleza de uma paisagem, o valor da água limpa, o tempo de lazer.

Monbiot lembra também que não se podem ignorar os desequilíbrios de poder que põem em xeque a conservação ambiental: um exemplo é o sistema de negociação de créditos de carbono na Europa, que falhou, segundo o jornalista, porque empresas muito poluidoras conseguiram obter créditos além do devido, graças a seu poder de lobby (mais na reportagem “Saindo das sombras”).

Negócios naturais

O conceito de capital natural tem gerado novos negócios no Brasil e no mundo. Richard Mattison é presidente da empresa britânica Trucost, que oferece serviços a empresas que querem conhecer e reduzir seu impacto ambiental. Um exemplo de empresa que investe em ganhos de imagem com responsabilidade ambiental é a fabricante alemã de artigos esportivos Puma, que desde 2011 publica um relatório do impacto ambiental de toda a sua cadeia de produção (mais na reportagem “Avançando nas medições”). A metodologia foi desenvolvida pela Trucost e outras consultorias.

Outro exemplo são os “títulos verdes” (Os chamados green bonds são projetados para captar recursos para projetos com baixa emissão de carbono), emitidos por empresas como GDF-Suez e Unilever, um mercado que tem crescido 60% ao ano. Segundo o banco HSBC, em 2013 foram lançados US$ 11 bilhões nesses títulos e, no primeiro semestre de 2014, US$ 18,3 bilhões.

Contrariando o senso comum de que a introdução de novos custos torna os produtos necessariamente mais caros, Mattison lembra que as externalidades negativas são quase sempre arcadas pelas sociedades. Isso significa que a incorporação desses custos à contabilidade tornaria, ao longo do tempo, os bens e serviços mais baratos, em vez de mais caros. “Pagaríamos menos impostos, teríamos menos gastos com saúde e transporte. Se reduzirmos a destruição no futuro, deixaremos de pagar o que pagamos por haver inundações e secas”, argumenta.

Estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) calculou que, sem o metrô, doenças respiratórias causariam um custo adicional de US$ 18 bilhões a São Paulo. A pesquisa mediu a frequência em hospitais em dias de greve do metrô. Saiba mais.

Segundo Mattison, a transição para uma economia mais sustentável não se dará de maneira suave e tranquila. Serão necessárias mais crises ambientais para que se torne evidente a urgência de internalizar as externalidades sociais e ambientais. Costanza faz o mesmo prognóstico.

O executivo diz compreender as críticas feitas por Monbiot, Barbara Unmüßig e outros, mas afirma que é preciso falar na mesma língua que os investidores e empresários. Os custos, ele diz, sempre existiram, mas nunca foram incorporados na avaliação de atividades econômicas, porque não havia maneira de introduzi-los na contabilidade.

O que é uma externalidade?

Externalidade é, originalmente, um conceito da teoria econômica. Reflete os efeitos das atividades de produção e consumo que não se apresentam diretamente no mercado. Fala-se em “externalidades de produção” quando as decisões de uma empresa são afetadas pelas de outra. Economistas gostam de citar como exemplo o caso de um apiário localizado ao lado de um pomar: ambas as empresas se beneficiam, porque as abelhas produzem mais mel, e as árvores são mais fecundadas. É uma externalidade positiva. Ao contrário, uma fábrica de cerveja tem de lidar com externalidades negativas se, rio acima, está localizada uma fábrica que polui: a água que lhe chegará será imprópria para um produto de qualidade. Carlos Eduardo Frickmann Young, professor da UFRJ, explica que a externalidade negativa é ‘socializada” entre aqueles que pouco ou nada contribuíram para gerá-la (mais em Entrevista).Não é difícil perceber como, a rigor, as externalidades estão em toda parte: poderíamos dizer que o mundo inteiro é uma enorme rede de externalidades, sejam ambientais, sociais, de produção, sejam de consumo. Quando a economia se torna oligopolizada, produz-se uma externalidade negativa de cunho social: a desigualdade e, com ela, miséria e doenças. Quando as cidades se entopem de automóveis, por falta de meios públicos de transporte, surge uma externalidade negativa de cunho ambiental e bem conhecida: a poluição, que também produz doenças e diminui a qualidade de vida. Este último exemplo envolve também uma externalidade negativa social: os congestionamentos, que reduzem o tempo de lazer e aumentam o nível de estresse.

O lado legal

Como demonstra a lentidão no avanço das iniciativas globais e governamentais, uma moldura institucional e legal é imprescindível para que a precificação das externalidades tenha efeito. Mauricio de Moura Costa, sócio-fundador da Bolsa Verde do Rio de Janeiro, cita o caso brasileiro, com o Código Florestal e a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), mas ressalva que essas leis ainda não estão plenamente regulamentadas.

“O papel das leis, nos mercados ambientais, é relacionado à formação da demanda”, explica Moura Costa. Com a instauração, pelo Código Florestal, de reservas legais que os proprietários rurais são obrigados a manter, estabelece-se um novo mercado, por meio do qual podem ser negociadas as Cotas de Reserva Ambiental (CRA) (Títulos que representam um excedente de área de vegetação natural em relação ao exigido na lei). Propriedades com reservas abaixo da cota podem escolher: ou recompõem a mata ou compram créditos excedentes de propriedades com floresta acima da cota. Estas últimas são remuneradas para manter sua mata de pé.

Já a PNRS trata de produtos e embalagens que, na falta de regulamentação, poderiam terminar em lixões e aterros. O trabalho dos catadores, que realizam cerca de 90% da logística reversa (Consiste em retornar embalagens e outros resíduos ao setor produtivo, para reutilização ou descarte adequado) no País, segundo Moura Costa, pode ser considerada uma externalidade positiva, um serviço ambiental.

A BVRio, explica o empresário, trabalha com créditos de logística reversa. Os catadores de lixo negociam o registro, em nota fiscal, de embalagens enviadas para reciclagem; quem o compra são empresas que precisam cumprir as cotas do PNRS.

Outros instrumentos semelhantes estão em compasso de espera, segundo Moura Costa, citando a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que prevê a criação de um mercado de carbono doméstico. Há ainda externalidades negativas para as quais não há marco legal ou mecanismos de mercado. O executivo cita a mobilidade urbana: “Em São Paulo, já existem cotas limitando o direito de se locomover em veículos particulares”, afirma. “A criação de um sistema de flexibilização dessas cotas criaria um mercado, trazendo mais eficiência ao sistema.” Segundo Costanza, um instrumento de direito econômico muito promissor para tratar de externalidades ambientais, “administrando o ambiente como um ativo comum, em vez de serviço ou bem privado”, é a figura do trust. Ausente da matriz jurídica brasileira, o trust exige que o ativo em si (um investimento ou uma propriedade fundiária) seja mantido intacto, e somente seus rendimentos sejam usados.

“Podemos pensar na atmosfera como um ativo comum, que seria mantido em trust para a atual geração e as futuras”, explica o economista. “Com um trust atmosférico, aqueles que gastam o ativo são cobrados por esse gasto, por exemplo, com impostos sobre o carbono, mas aqueles que melhoram o ativo são pagos, por exemplo, com créditos de carbono.” Costanza ressalva que não se trata de um mercado comum, mas de um instrumento jurídico no nome de toda a comunidade global. Se deixar de contar as externalidades é negligenciar os serviços ambientais fornecidos pelo planeta, os cálculos de Costanza, Mattison e outros mostram que o bolso onde dói essa negligência é o bolso da humanidade como um todo.

Fonte – Diego Viana, Página 22 de setembro de 2014

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