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O mito do varejo ou a verdade sobre a sustentabilidade?

Letícia Freire, do Mercado Ético de 07 de julho de 2009

Fotos: Leticia Freire

Do hipermercado ao boteco universitário, todo mundo está envolvido de alguma forma com o varejo. Mas nem todo mundo se dá conta de que existe uma complexa cadeia produtiva por trás dos cerca de 40 mil produtos vendidos por aí. Como vitrine dos novos hábitos de consumo e transformação socioambiental, o setor varejista se mostra, cada vez mais, um interlocutor importante no campo da responsabilidade social e da sustentabilidade. Ainda assim, paira no ar uma dúvida: até que ponto a relação entre processos de produção e padrões de consumo está sendo levada a sério pelos grandes players?

Para entender melhor a questão, o Mercado Ético conversou com Roberta Cardoso, coordenadora do Programa de Responsabilidade Social e Sustentabilidade no Varejo, do Centro de Excelência em Varejo da FGV-EAESP. Confira abaixo.

Mercado Ético – Com foco na sustentabilidade, o que significa o varejo hoje para o Brasil?

Roberta Cardoso – O varejo hoje tem um poder muito grande de dar acesso aos produtos e serviços para os consumidores. Esse é o seu papel. Mas em relação à sustentabilidade, boa parte dos varejistas não tem ainda a noção da importância e da expectativa que existe sobre eles. Eles se veem acuados em relação às cobranças que surgem, seja pela mídia ou pelos consumidores. Como no caso das sacolas plásticas, em que houve uma pressão intensa para ajudar a resolver esse problema.

Por que essa cobrança imediata? Por que o varejo é a ponta do iceberg de toda a cadeia produtiva. Existe uma história enorme por trás dos 40 mil produtos existentes em média em uma loja. Ali, na ponta, estão evidenciadas todos problemas que precisam ser tratados. Isso, por si só, leva a uma questão, que é a cadeia produtiva. Ou seja, a forma como aquele bem ou serviço é produzido. Essa reflexão nos faz perguntar, por exemplo, qual o impacto da produção, seja social ou ambiental.

Existe outra classe de problemas, muito mais profunda, que são tocantes ao nível de consumo e à forma como a nossa sociedade está estruturada. Diante dessas questões, o varejo se vê um pouco impotente. Afinal, sua função até hoje é apenas distribuir e incentivar a compra. Ou seja, quanto mais consumir melhor. Mas estamos chegando a um questionamento sobre a real necessidade de tanto consumo. Estamos nos perguntando sobre os reais benefícios ou utilidade de tudo que compramos. Não estou falando de acesso a itens referentes à sobrevivência.

Eu preciso de 20 aparelhos eletrônicos diferentes para a mesma finalidade? Eu preciso de um celular novo todo ano? Eu preciso estar consumindo para me sentir feliz para assegurar minha qualidade de vida? Existem perguntas mais profundas que não estão sendo abordadas. E para que avanços significativos na sustentabilidade sejam feitos, teremos de partir para a solução dessas questões. Para chegarmos à ruptura, precisamos de maturidade, o que não encontramos no varejo e em muitas empresas e indústrias.

Mercado Ético – Trate-se de uma reflexão mais ampla e profunda sobre a sustentabilidade. Ou seja, não se trata apenas de que uma análise setorial, é isso?

Roberta Cardoso – Sem dúvida. Um ou outro falam a sério sobre a profundidade da questão. Mesmo nas reuniões de grandes empresários, a profundidade costuma ser mínina. De uma forma geral, estamos brincando de casinha. Vamos trocar isso por aquilo, colocar uma sacola de pano no lugar do plástico etc. Essas melhorias são incrementais. São importantes, sem dúvida, mas precisamos de rupturas para lidar com a sustentabilidade. No limite, precisamos repensar o futuro. Não dá mais para partir da realidade que estamos. Não basta propor melhorias e esperar que, apenas com isso, seja possível alcançar o desenvolvimento sustentável. Temos de fazer o caminho inverso: temos de pensar com será esse futuro e buscar soluções para garantir que ele exista de fato.

Mercado Ético – Mas é complicado falar em ruptura com tantos interesses econômicos estabelecidos.

Roberta Cardoso – Se partimos do que existe, sim, esbarramos em uma série de interesses econômicos que já estão estabelecidos e que são muito fortes. A área de sacolas plásticas, por exemplo. Você tem uma indústria de papel muito forte, uma indústria de plástico poderosíssima, em que, claro, todos são contra acabar ou diminuir a embalagem, o que diminui faturamento. Estamos falando de negócio e cada um defende o seu. Não dá para romantizar a coisa. Mas repare: dos três “Rs” [reduzir, reutilizar,reciclar], ninguém fala do reduzir. Uma vez ou outra se ouve falar dele, mas o grosso da mensagem está no reciclar.

Mercado Ético – O que continua incentivando o consumo, certo?

Roberta Cardoso – Claro. Reciclar é ótimo, mas é uma floresta do Ipê [detergente]. Vocês se lembram dessa propaganda? Ela era muito freqüente há mais ou menos um ano. Mostrava o detergente e a floresta. Depois vinham uns dizeres mais ou menos assim: “fique tranquilo para comprar Ipê, porque estamos plantando arvorezinhas”. Voltamos à inquisição, onde se paga para se ter consciência tranqüila.

Se quisermos falar em neutralização de carbono, temos que começar a avaliar o que do processo de produção deve ser eliminado. Sempre fica algo para ser neutralizado, não dá para retirar tudo do processo, mas o que pode ser eliminado? Essa é a questão. O problema é que as empresas neutralizam tudo, não eliminam. Essa balança continua gerando degradação social e ambiental.

Mercado Ético – Mas o que falta na equação?

Roberta Cardoso – Faltam métricas que permitam definir caminhos mais sustentáveis. Sejamos críticos: o ser humano tem uma dificuldade natural com a mudança. E as soluções que mais agradam são aquelas que tendem a manter tudo como sempre foi. As pessoas querem tudo como está agora e esperam ser, com isso, sustentáveis. E claro que as empresas também têm essa visão simplificada da sustentabilidade.

Ou seja, temos o core business das empresas e seu entorno. Quando se trata do entorno, da comunidade em que ela está inserida, as empresas fazem qualquer negócio para aplicar a sustentabilidade. Pintam muros, colocam flores, distribuem apoios culturais, doações sociais etc. Mas quanto mais perto se chega do núcleo da empresa, da gestão, menos mudança existe. E é exatamente nesse núcleo que precisa começar a mudança.

Mercado Ético – Mas essas coisas são relativamente óbvias, não são? Ou seja, o discurso da sustentabilidade existe, ele não é novo, e de certa forma vem cansando com essa falta de coerência entre teoria e prática. São discursos reformado de um modelo falido, o que pouco tem ajudado. Então, como essa ruptura pode efetivamente acontecer? E voltando um pouco os olhos para essa ponta do iceberg, o varejo, como inovar nesse cenário que você descreveu?

Roberta Cardoso – Vamos conversar sério. No Brasil, qual iniciativa existiu no varejo, fora o recente boicote aos pecuaristas? Que ações? Existem exemplos significativos, mas muito mais interessantes do que importantes, essa é a verdade. O que se passa, então? Só os grandes varejistas, como o Wal-Mart, têm o poder de pressionar a indústria. Os pequenos, sozinhos, não.

Fora que o varejo tem uma dinâmica muito diferente da indústria. A do varejo é muito mais rápida, depende de giro de produtos. As margens são muito pequenas. Para obter grandes margens o varejo trabalha com “economia de tostão”. Trata-se de um setor com muitos dilemas: a dinâmica é muito rápida, a concorrência é muito grande, baixa margem e uma necessidade de giro muito grande. Tudo no varejo é muito intenso, muito rápido. As coisas são muito imediatas, para o bem ou para o mal.

Sem mencionar a operação. No varejo ela consome muito tempo. Sem a operação, o varejista fica muito rendido, qualquer piscada pode significar prejuízo para o negócio. Em geral, o nível educacional é menor que na indústria. Os funcionários são menos qualificados. Se você for falar com um funcionário de uma empresa varejista, os caras dizem “eu estou aqui enquanto eu não arrumo emprego”. Ele não acha que aquilo é trabalho.

Enfim, com esse cenário é complexo falar de ações estratégicas de longo prazo. A própria dinâmica exerce resistência. Então você fala, “ah, mas o varejo pode pressionar a indústria?” Dependendo do porte, pode. Dá para escolher de quem comprar, por exemplo. Mas fica muito difícil, nessa operação que já é tão intensa, conseguir mudar processos – que é exatamente o que é necessário quando se fala em sustentabilidade.

É muito complicado. O varejo não propõe reformas. Ele é parte do processo. A solução ainda precisa ser mais redonda, precisa de mais parceria.

Mercado Ético – Mas existe um norte?

Roberta Cardoso – Atingir a sustentabilidade é falar em um pacote de iniciativas bem formatadas e divididas entre todos os setores. É nisso que eu acredito. Ninguém, sozinho, causará ruptura alguma. É preciso uma decisão desenhada e trabalhada por todos, o que não é fácil. As empresas, em geral, não estão preparadas para trabalhar com cooperação.

Mercado Ético – E as associações? Elas não podem fazer esse papel mediador?

Roberta Cardoso – Não só podem, como deveriam fazer. Assim como vão defender o varejo em assuntos que tramitam no Congresso, por exemplo, o assunto da sustentabilidade também deveria estar sendo proposto. Mas posso afirmar, sem sombra de dúvida, que nenhuma associação está preparada para isso. Nenhuma!

Mercado Ético – Mas então não há empresa sustentável?

Roberta Cardoso – Empresa sustentável é uma miragem. Falamos de graus diferentes de sustentabilidade, mas não de empresas sustentáveis. Algumas estão mais à frente do que outras. No varejo, o Wal-Mart é hoje um exemplo.

Mercado Ético – Mas a organização fala em redução de consumo?

Roberta Cardoso – Há sem dúvida um aumento da oferta de produtos sustentáveis. Mas ainda é complicado demais falar em estratégias para a redução do consumo. A própria sociedade valoriza a capacidade de venda – empresas que vendem mais são mais poderosas, têm um excelente desempenho financeiro.

Não é fácil. Volto a dizer: não se trata de uma saída isolada. Não se trata em transformar o mundo radicalmente. A cadeia da carne, por exemplo, é igual para todo o varejo. A lição que fica é que dá para cooperar em favor da sustentabilidade. Claro que a presença do governo, regulamentando e fiscalizando, é fundamental. Mas antes disso, o processo demandou muita articulação e vontade. É suado.

Mercado Ético – Qual sua opinião em relação aos selos verdes? Eles podem garantir processos mais sustentáveis?

Roberta Cardoso – A idéia do selo é ótima. É muito bom garantir a qualidade no processo produtivo por meio de certificações. Mas existem duas questões. A primeira é o excesso de selos e certificações. Hoje tem selo pra tudo! Outra questão é que o varejo não comunica o selo no ponto de venda. Então o consumidor, sem informação, não consegue diferenciar o que é uma certificação de outra, entende? Não adianta só criar a solução, é preciso entender como operá-la.

Eu entendo que a realidade é muito difícil de ser mudada, ou simplesmente, encarada. E as pessoas não estão dispostas. Mas eu acredito que a equação terá mais cooperação daqui para frente. A desmaterialização da economia – tirar o foco de produtos e passar para serviço – acabará contribuindo para que haja mais demanda por socialização. Por exemplo, uma lavanderia por prédio e não uma por apartamento. É nessa mão que eu acho que a coisa caminha um pouco.

É importante reforçar que a situação é complexa e crítica, mas há alternativas. Aplicá-las significa reduzir a intensidade do nosso próprio sofrimento. O conceito da sustentabilidade está muito no ideal, no distante. As pessoas precisam se preocupar mais com a coletividade, com a regeneração das relações humanas e sociais. Varejo, empresas, indústria são pessoas. Todos eles precisam discutir coisas juntas para melhorar o cenário. Ainda há muito para fazer, muito. Não quero ser radical. Acho que estamos caminhando, mas muito lentamente.

Comentários da FUNVERDE

Nada está mudando, é tudo propaganda vazia, ninguém quer diminuir seu lucro em benefício do planeta e da humanidade. As pessoas e empresas são acomodadas, não querem mudar. As coisas só mudam com um estímulo externo e este estímulo em geral vem das leis e de multas pesadas. Poderia vir também da cobrança da sociedade, mas a sociedade está anestesiada, assistindo novela, jogando futebol, pão e circo para se esconder dos problemas reais que a humanidade enfrenta.

É o caso das sacolas de uso único de plástico eterno. Faz 4 anos que a FUNVERDE vem lutando, propondo leis, falando na mídia, escrevendo, fazendo reuniões com empresários e até hoje somente uma cidade – Xanxerê, SC – baniu as sacolas do comércio. Daí vem Wal-Mart, Carrefour e Pão de Açúcar dizer que a solução para livrar o planeta de 10% de todo o seu lixo – as sacolas de uso único de plástico correspondem a 10% de todo o resíduo gerado em uma cidade diariamente – é fazer sacolas 30% mais grossas, com 30% mais de plástico. Piada ridícula, sem graça. E quem paga a conta? A humanidade, os humanos que ainda nem nasceram.

Se os varejistas quisessem mesmo fazer sua parte, eliminariam pura e simplesmente esse lixo, que é a sacola plástica de uso único, pronto, problema resolvido. A partir de primeiro de agosto de 2009 este supermercado, esta loja, esta videolocadora, esta farmácia, esta frutaria, esta banca de revistas, não disponibilizará mais sacolas de uso único. Favor trazer a sua sacola retornável para levar suas compras. Toca a  campainha, chama o próximo problema da fila. Próximo problema, por favor!

Daí vem o MMA com uma campanha hippie “saco é um saco!”. Faça-nos o favor! Pelamordegaia! O governo pode resolver este problema com uma canetada. Eles não tem que fazer campanha bacaninha, tem que resolver o problema, nós os elegemos para isso e, de mais a mais, os pagamos muitíssimo bem. Quer a solução? Decreto presidencial: a partir de primeiro de agosto de 2009 está proibida a fabricação, comercialização e uso de sacola de uso único em todo o comércio no país. Mais um problema resolvido, os seres do amanhã agradecem. Próximo problema, por favor!

Parabéns roberta por sua franqueza, por mostrar que as empresas não estão fazendo sua parte para mudar o futuro da humanidade.

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